Entro na sala e sento na
poltrona diante do sofá. Bufo alto, carregando na respiração pesada:
─ Ufa! Uuuuuufa!
Olho cansado o cadáver do
minúsculo, que mandei embalsamar ainda ontem. Trinta (eu disse 30) litros de
formol.
Ele me fita de volta sem esboçar
reação.
─ Não sei se vou aguentar,
lu.
O minúsculo só fita. Não
pestaneja.
─ Estou no limite.
Aguardo. Passam-se alguns
segundos. Como ele não reage, continuo:
─ A coisa tá braba, lu.
Cubro o rosto com as duas mãos,
dedos esticados, tesos. Escorrego as mãos para baixo, puxando a pele dos pomos.
As pálpebras inferiores se esticam numa careta dramática. Espio. O minúsculo
continua impassível.
─ Não sei sobre você. Mas
pra mim chega.
Lanço mão deliberadamente
do clichê roliudeano, que tão brutalmente nossos tradutores costumam carcar em
nossos ouvidos último-laceanos. Giro a cabeça para o lado. De soslaio, dou uma
estudada no minúsculo. Nada.
─ Companheiro, é o fim.
Estou louco. Lelezinho da silva. Esquizofrênico perto de mim é feliz feito um
anjo no éden.
Aperto os olhos com força,
aguço os ouvidos. Espero, tentando escutar um farfalhar do paletó armani que o
minúsculo mandou comprar para o dia da posse e que, obviamente, veste desde que
o embalsamei. Nada. Nem um pigarrinho para limpar resquícios do cubano que ele
costumava baforar até que com uma certa jactância, como se auferisse do charuto
um prazer cujo segredo só ele sabia e mais ninguém em todo este vasto mundo
cheio de chinas e hindus.
─ Escuta, lu. Escuta com
atenção. Com toda a atenção que você puder.
Por um momento me deixo
tomar por uma tépida e irresistível onda de ânimo. Esboço um sorriso
calculadamente enigmático, me remexo na poltrona, fazendo estalejar as velhas
molas, deixo o olhar passear vagabundo pelas paredes manchadas de mofo, pelo
tapete puído que meu pai me deixou de herança. Finalmente, após o que me
pareceu um hiato suficientemente longo para despertar no minúsculo a reação
esperada, volto os olhos para ele e... nada.
De repente me ocorre uma
idéia e exclamo efusivo:
─ Já sei! Você não gosta
de ser chamado de lu. Putz! Como é que não me toquei antes? Que tratamento
prefere?
Deixo a boca aberta e
espalmo as mãos para a frente em entusiasmo pueril. Fito o rosto do minúsculo mais
uma vez. Espero. Nada.
Explodo:
─ Porra, lu! Assim não dá!
Digo isso e espero. Ele
não emite um resmungo, um amuo, nenhum feedback. Sequer um "eu não sabia
de nada".
Viro as costas e saio da
sala, relativamente tranqüilo. Pelo jeito, o minúsculo perdeu a capacidade de
reação. Pelo jeito, os 30 litros de formol foram suficientes para lhe calar a
boca. Acho que agora ele não vai mais despertar o demônio dentro de mim.