Me lembro que Lulla Mensallero I
esperou um ano na presidência até dar a facada: a compra do avião de 60 milhões
de dólares.
Me lembro que pensei: ninguém escapa
à ideologia de classe.
A primeira dama logo mandou plantar
uma floreira imitando a estrela peetista no jardim do palácio. O velho instinto
da territorialidade. É preciso marcar presença. Letícia esteve aqui.
O que isso encerra de cafonice e ao
mesmo tempo pendor para se lambuzar com os deslumbres do poder não está no
gibi. E não tem preço a lição que tiramos com um sobrevivente da senzala
encasquetado no poder. O monarca barbudinho agiu exatamente como temíamos em
nossos pesadelos mais inconfessos e tínhamos vergonha de demonstrar ─ se
aliando à pilantragem estufada de grana dos amos craques em traçar o rabo da
escumalha enquanto lançava aos quatro ventos as mais cínicas campanhas de
marketing jamais feitas mostrando à escumalha que ele, Lulla Mensallero I,
peitava os facínoras.
E os mensalleros a se regalar com o
fausto recém-conquistado, dando a nós, eternos boquiabertos com a
sem-vergonhice dos espertos, uma tremenda duma banana, também se mostrando
exatamente o que receávamos no fundinho da alma: são todos, uns mais, outros
menos, mas todos, substalinistas. Se era para ser assim, eu preferia a
trombadice descarada de um collor. Pelo menos não parecia tão ─ cruz-credo ─
ominosa. Esse zé-dirceu, cara, essa pessoa tem no olhar um brilho de quem é
capaz de tudo. E o tal Mercadante? Ninguém ─ ninguém no século 21, séculos
depois do nascimento de Machado ─ usa um bigode daqueles. O que tem de bactéria
naquele escovão dava pra derrubar um governo.
E, olha, quem faz e quem deixa fazer
uma floreira daquelas no palácio do governo é capaz de qualquer coisa. Really.
Impressionante: o rapaz tem uma
história de vida que não é batatinha: pai alcoólatra violento, de quem ele e o
resto do time de futebol que eram os irmãos levavam surras virgílicas, a
infância na fome profunda e, imagino, na presença constante da morte ─ e, se
não, concretamente, na indiferença absoluta quanto aos louros pelo penoso
sacrifício de existir, a, imagino fantástica, odisséia para o henfílico sul
maravilha, a lábia de líder messiânico que, imagino, deve ter reconhecido em si
já adulto, e o sucesso estrondoso que todos conhecemos no sindicalismo. Não é
pra qualquer neguinho ─ tiro o chapéu.
Aí que acontece? O matuto rastaquera
a quem a nata sempre torceu o nariz e de quem as raposas capitalistas esperavam
um retorno à tanga neandertal e ao porrete comunista, esfregando as mãos de
entusiasmo prevendo a derrocada do incipiente renascimento dos delírios
socialistas, renascimento ante o qual a ociosa inteligentsia européia esfrega
as mãos torcendo para que sua ojeriza ao imperialismo americano tenha
finalmente encontrado o líder operário sonhado por lenin ─ que acontece? O
sujeito tenta dar um golpe colossal na nossa débil República enquanto se aliava
aos mais primitivos líderes da eternamente prostrada Latinoamérica.
Ambições estritamente políticas à
parte, ainda desconfio, depois desses sete anos de Mensallão, que a top
priority de don Lulla Mensallero I era provar aos bem-nascidos que ele,
reizinho, lograra escapar da sina do pau de arara e que não ia se limitar a
emular os bem-de-vida. Tento imaginar o turbilhão dentro da pobre alma do rapaz,
feito filme fugindo do chão de terra do barraco no sertão pernambucano e next
minute fechando o cinto de segurança e pondo as mãozonas de nove dedos no
throttle dum boingão prateado de chorar deixando a caboclada de olhos ofuscados
enquanto ganha os céus rumo à América.
Lembro ainda de um jornalista da
Folha de SP escrevendo que quem reclamava de Lulla Mensallero I ter gasto 60
milhões de dólares num avião tem mentalidade de classe média. Ora, estava tão
na cara. O moço só queria realizar seus sonhos de um dia se ver do lado
de lá. Nem FHC trocara de avião. E, lalarila-ri-rá, sabia que pegaria
incuravelmente mal. Como pegou para Lulla Mensallero I. Como pegou a cena mais
grotesca que já vi em toda minha vida: aquela do lançamento do Fome Zero no
sertão sei lá de que estado nordestino, com garçãos de tuxedo branco e
gravata-borboleta servindo água mineral gelada em bandeja aos novos caipiras no
poder. A caboclada em volta olhava sem saber se estatelava os olhos ou deixava
o queixo cair. Naquela cena vi que seria o peetê no poder. Mais um a cair na
farra, se refestelando com a grana que vosmecê e a escravaiada dão o sangue
para pagar ao governo.
E, carambola, com respaldo da, com o
perdão da palavra, intelectualidade peetista. Os indefectíveis acadêmicos que
se encarregam de fazer a bugrada baixar a orelha nas universidades e amestrar
via suplementos domingueiros candidatos a intelectual em eterna busca de uma
voz que lhes aponte um rumo. Tinha até uma que os áulicos sem eira nem beira
chamam "filósofa" que acusa a "burguesia" de perseguir o
partido dos "trabalhadores". Indeed, a imorredoura rebeldia política
e sagacidade crítica e honestidade intelectual dessa gente pensante que nos
defende a nós, destituídos de pai e mãe, é pungente.
Falando nisso, por onde andas, Chauí,
que não te escuto? Pobres candidatos a filósofos uspinianos.
No Berção de 190 milhões, cinco
milhões deitam e rolam no suor dos demais. É turminha esperta, constituída de
políticos, juízes, funcionários públicos, sindicalistas e a nata que nos
protege e ama. São os herdeiros em geral ─ herdaram o sistema partidário e a
legislação trabalhista de Getúlio, as benesses que os governos militares se
apressaram a garantir para quem entrasse para a "máquina", os
benefícios legais e "direitos adquiridos" que a Santa de 1988
sacramentou para os que sabem como alcançar as túrgidas e obscenas tetas do
governo.
Parece que se
esqueceram de proteger o Berção de aventureiros aspirantes a dulci.