O cinismo peetista me aturde. Me dou conta de que
tenho, nestes últimos dez anos, estado sob torpor. Não um desses estados
intransferivelmente pessoais em que caímos sem mais nem menos desde quando
tomamos consciência do mundo e que aos poucos vamos aprendendo a suportar, até
o aceitarmos como parte da nossa natureza à medida que o tempo nos faz
amadurecer, no meu caso, na marra. É um aturdimento, como todos os
aturdimentos, meio imperceptível para mim. Sendo assintomático, quem me olha,
mesmo de viés, pensa que estou apenas distraído, matutando essas encucações que
me habituei a matutar.
Hoje me dei conta de que o cinismo peetista é tão
natural nessa absurda raça de seres peetistas quanto o são nuvens no céu e
oxigênio do ar. Ainda há pouco olhava o mundo sob uma escala classificatória.
Minha escala começava lá do alto com valores bons como honestidade,
fraternidade, espírito de luta, esforço pelo bem comum. E terminava aqui
embaixo com valores ruins como safadeza, perfídia, deslealdade, patifaria. De
repente percebo que estava grosseiramente errada ─ essa é a escala dos tolos,
dos que trocam as bolas engolindo o mal camuflado em poder, que aceitamos
inermes, vencidos, lassos e covardes. Pior, saco com desgosto que até há pouco
minha visão do mundo, da vida, dos seres humanos, da história e dos fatos era,
putz! religiosa. A religiosidade cega, de que sempre debochei desde criança,
era meu refúgio no mundo dos adultos e eu não sabia. O insight me dá
inescapável sensação enojada de mim mesmo.
Não sei, nunca soube, aceitar a baixeza como apenas
mais uma verdade intrínseca da natureza humana. Nós românticos temos essa mania
neurótica de forjar fantasias para amenizar a feiúra que nos cerca. Quando o
desvario pega fundo a ponto de nos deixar absolutamente cegos, como é o meu
caso, olhamos as pessoas e, numa tentativa de fazer com que pareçam menos
grotescas, as imaginamos vestidas com nossas doces, diáfanas, sedosas
alegorias.
Meus dias são feitos de vislumbres. Do início ao
fim da jornada vou atinando, através de vagos filtros sensoriais, com os
fundamentos de que somos feitos. Filósofo desvirtuado, identifico as verdades
e, solerte, as transfiguro em nome dos meus mais egoístas interesses, obtuso,
vesgo contrabandista de mim mesmo.
O cinismo peetista é minha dolorosa evidência interior
de que nós brasileiros não podemos ser outra coisa que não benignamente
esquizóides. Será condição temporária, até que uma geração num futuro longíquo
consiga quebrar nossa queda à prostração?
Sim, agora vejo tudo com clareza: devemos ter duas
ou mais dimensões. Se não for ridiculamente tolo, se não quiser passar por
degenerescência ambulante estapafúrdia, tenho de assumir minha ambiguidade
ética. Nesta época em que todos precisamos estar atentos às inexoráveis
transformações evolutivas do ser peetista, há que incorporar "lados"
antes insuspeitos que vicejavam feito aliens em nosso âmago. Temos de assumir que
a nação tem um lado andrógino, aceitar aquele lado tribal, condescender com aquele
lado escuro. Sim, nós brasileiros somos multifacetados. Não complexos, mas complicados
– o que pode ser reconhecido quando eliminamos do olhar o viés moral.
O cinismo peetista por fim me demonstra
inequivocamente que meu sonho com o Bem ─ sonho básico, que pensava estar
indissoluvelmente mesclado à minha Alma ─ era apenas isto: sonho. E prova
também que enfim posso deixar de me martirizar por ser, mais que vacilante,
dúbio ─ agora sei que em meu país habitam seres que pensam o que lhes dá na
telha sem maiores preocupações uns com os outros. São uns entes ambivalentes,
ocupados por outros seres que na maior parte do tempo os levam em direções
diferentes, às vezes antagônicas.
Queria ser irônico, invocar meu pai, dizer, pai,
quanta perda de tempo e saúde você ter querido me ensinar o certo e o errado.
Que simplório, ter escolhido nascer nesta época ingênua, chegando já sem lugar
neste mundo em que os adultos sequer piscam mais na presença de
cafés-com-leite. Pisamos e pisaremos eternamente descalços nos cacos de vidro
vindos das garrafas de inebriante néctar que eles arremessam em nosso caminho.
Nossos pés sangram, olhamos atônitos para o chão, eles dão contagiantes
gargalhadas nos vendo atônitos. Não é um mundo novo e sim um paraíso leve e
isento de injunções éticas para nós inédito. Existe há cinco mil anos, a idade
da civilização. É o mundo em que o esperto engole o bocó, pai. Neste para nós
inusitado changrilá sob um dissimulado império da lei da seleção natural,
nossos senhores, movidos a cinismo peetista, não nos devoram ─ apenas nos
digerem para nos escravizar. Somos mais úteis vivos.
Em meio a estes dolorosos insights, a névoa que
encobre meu espelho vai se descortinando. Aos poucos identifico os novos homens
e mulheres em que se haverão de converter os brasileiros futuros à luz dos
recentes, penosos aprendizados. Em breve, quando nos acharmos encurralados num
dos muitos becos sem saída em que vivemos nos metendo, ventosas salvadoras
nascerão em nossas mãos para escaparmos subindo paredes. Quando, desolados,
vasculharmos a mente em busca duma saída e não encontrarmos senão pensamentos
inutilmente vazios, novas cabeças, alívio!, brotarão de nossos ombros, cabeças
de cérebros rejuvenescidos e ágeis, equipadas taticamente com algumas dezenas
de olhos alertas, poderosos, faiscantes de energia redentora. A cada nova
enrascada ─ que, americanamente, chamaremos "situação"
─, veremos nascer, embevecidos, um novo lado em nós mesmos, um lado que, embora
apenas parte de todos os nossos lados, será paradoxalmente unívoco, apto a estrategicamente
se expor, dependendo das imposições imediatas do meio ambiente. Quanto aos pés,
continuaremos a ter os dois de sempre. Mas ─ se você me permitir, enfim, uma
decepcionante conjunção ─ agora cada qual voltado numa direção. Assim ─ se você
cordialmente permitir que eu o tome pela mão e o conduza ─, evoluiremos parados
ao sabor desses antigos novos amos que ditam nossos destinos. Seremos, enfim,
meros sobreviventes.