Como todo jornalão, o Estadão também tem
seu especialista em “tecnologia”. As aspas aqui se devem ao fato de que tudo é tecnologia
hoje em dia ia ia. Estamos submersos, só com a pontinha do nariz ainda fora do lúgubre
lago da conectividade. (Pois é, tô meio que carregando nas tintas hoje.) Em breve,
muito em breve, nenhum de nós mais terá escapatória e cada uma das novas atividades,
até a mais comezinha, não se realizará senão por meio dum computador que nos interligará
a todos dez bilhões de mamíferos bípedes.
Como ocorre uma vez por mês em minha vidinha
sem graça, ontem foi dia de comprar a edição dominical do Estadão. O tal tecnólogo especialista a que me referi no
primeiro parágrafo tem uma coluna, não sei se semanal, no caderno Economia. E atende
pelo nome de Renato Cruz.
Na edição deste domingo, a coluna do sr.
Cruz traz uma notinha dizendo que o Brasil é um mercado muito importante para o
Facebook. Somos o segundo maior público desse portal de “relacionamentos” e contribuímos
com uma grana preta para aumentar ainda mais a espetacular fortuna daquele rapazinho
loiro... Como se chama mesmo? Deix'eu ver aqui no Google... Ah sim, Mark Zuckerberg.
Vocês na certa já repararam que em todas
as fotos que tiram do citado rapaz — e devem tirar milhares toda vez que ele sai
até a banca da esquina para comprar um exemplar do N.Y. Times, tal como faço aqui
com meu fiel Estadão, ou até mesmo uma revistinha de palavras cruzadas só para passar
o tempo enquanto sua conta bancária engorda à taxa de um milhão de dólares por segundo —, pois bem, em todas as fotos que tiram dele,
Mark está sempre com aquela carinha de quem superou as mazelas da raça e vive lampeiro
a saltitar por entre as nuvens (que, no momento em que escrevo, estão recobrindo
por completo todo o bairro, inclusive minha humildade casinha cujo telhado está
mais furado que papo de petista, com o céu sobrecarregado por uma carapaça de cumulusnibums
com jeitão nada amistoso — parece que vem chumbo líquido por aí).
A carinha folgazã do Mark, conheço muito
bem essa sensação de euforia. Certa vez, ainda adolescente, ganhei — sozinho, ressalte-se — uma bateria de panelas numa rifa que tinha comprado
um mês antes da minha vizinha Esmeralda. De repente tocam a campainha, vou atender
e lá está a Esmeralda c'uma baita caixa de panelas nos braços. Ela me parabenizou,
sorrindo. Pelo que me lembro, sorri de volta, provavelmente com a mesma cara do
Zuckerberg quando seu contador liga para avisar que sua caixa-forte cresceu mais
um bilhãozinho de ontem para hoje.
Antes de prosseguir, porém, gostaria de
abrir um breve parêntese. Quando digo lá trás que somos o segundo maior público
do Facebook e contribuímos com uma grana preta para o etc. e tal, apenas fiz uso
do plural majestático com o intuito de mostrar que sou modesto. Na verdade, não
me incluo no público do Facebook, pois não sou membro do dito, e, portanto, não
dou sequer um tostão furado para a já escalafobética fortuna do nosso querido M.Z.
Mas o assunto desta postagem não é quanto
o Mark fatura ou deixa de faturar. Mais uma vez, acabei me desvirtuando pelo caminho,
sorry. O tema aqui é a coluna do especialista em tecnologia do Estadão.
Quando fui interrompido por mim mesmo,
falava duma nota anexa à coluna do sr. Renato Cruz a respeito do enorme sucesso
do Facebook por estas bandas.
Cruz diz que um tal de Alexandre Hohagen,
que é vice-presidente da empresa para a América Latina, criou um novo produto que,
pelo que entendi, funciona assim: quando o usuário do Facebook faz o logout, ou
seja, se desconecta da desgraceira, aparece um anúncio comercial na tela.
Se compreendi direito, é isso.
O sr. Hohagen explica que tal produto
deu certo neste paraíso tropical porque por aqui é comum os usuários acessarem o
Facebook a partir dum computador compartilhado. Com isso, tem sempre muita gente
fazendo logout e caindo vítima do miserável do anúncio. Nos EUA, pelo contrário,
a maioria nunca se desconecta e por isso nunca é obrigada a aturar mais uma propaganda
entre as milhões a que todos estamos sujeitos a cada dia na internet.
“O produto teve um sucesso absurdo”, solta
fogos de artifício o vice-presidente do Facebook. Segundo ele, o Wall Street Journal
publicou recente artigo chamando a Mãe Gentil de “capital da mídia social do Universo”.
Reparem que “Universo” está com a letra
inicial em maiúscula. Optei por manter a grafia original da palavra escrita pelo
sr. Renato Cruz. Por que o sr. Cruz acha que universo deva ser escrito em letra
grande, não faço ideia. Será por ser igualmente grandão? Vai ver, o preclaro jornalista
imagina que tudo que é grande deva ser grafado à altura. Ou talvez o sr. Cruz seja
apenas mais um dos que hoje em dia macaqueiam tudo que os americanos fazem, até
mesmo os barbarismos linguísticos.
Quem liga? Todo mundo e seu mecânico hoje
em dia escreve como lhe dá na telha e estamos conversados.
Por fim, o sr. Renato Cruz encerra sua
notinha informando que o Brasil “é a segunda maior audiência do YouTube e está entre
os cinco principais mercados do Twitter”.
Ponto final.
Mais nada.
O tom geral da nota me parece sugerir
algo de comemorativo. Como sói acontecer hoje em dia quando leio alguma matéria
na imprensa dita especializada, fiquei confuso: será um texto jornalístico ou uma
peça publicitária?
Não. A impressão foi essa mesma. A nota
do jornalista não é neutra. Não é imparcial. Pelo contrário, decididamente exalta
a “grande descoberta” do funcionário do Mark.
Não é pra menos! redarguiria o sr. Cruz
caso fosse interpelado a respeito. O tal “produto” é revolucionário! Você desliga
a praga do Facebook e lá está, bem no meio da sua tela, mais um anúncio a lhe recomendar
que você estique seu pênis em dez centímetros, compre um Citroën por apenas trocentos
zilhões de pesos, assine um canal da Sky para estar por dentro de tudo que acontece
no Big Brother ou sei lá que raio de serviço ou badulaque Mark Zuckerberg quer que
eu compre.
Mas nem é exatamente esse “meu” problema.
O problema que vejo nesse tipo de jornalismo
que se deixa misturar desavergonhadamente com a publicidade é que nunca há sequer
um resquício de visão crítica em tais matérias. Para o sr. Cruz, parece ser uma
maravilha que a empresa do Mark tenha descoberto mais uma forma, dentre tantas milhões
que já “descobriram”, de atazanar a paciência do pobre usuário.
Onde estão as reportagens sobre o calvário
que se tornou navegar por sites de jornais e revistas — ou qualquer grande site
“conteúdo-intensivo” — atualmente? Ler o portal do próprio Estadão hoje é sinônimo
de tortura, mesmo para assinantes. Assistir a um vídeo no YouTube é um acinte. Esses
caras estão conseguindo tornar um inferno uma experiência que até há pouco tempo
prometia abrir um novo mundo de entretenimento e informação sem as pestilentas propagandas.
Christ, não há um limite nunca?
Mark Zuckerberg já não garfou mais que
todos seus descendentes poderão torrar até o ano 3000, se este planeta ainda existir
até lá?
E a nefasta padronização dos comportamentos
online, com bilhões de indivíduos submetidos a um único ambiente, induzidos a reagir
da mesma forma aos mesmos estímulos, instados a xeretar na vida alheia, encorajados
a invejar a vida alheia, instigados dia após dia a “curtir” as ações alheias como
autômatos condenados a clicar naquele maldito botãozinho.
O deslumbramento com cada novidade surgida
no mundo online não pode nos levar a todos a uma aceitação acrítica de tudo que
nos queiram empurrar goela adentro. É extremamente paradoxal que a interatividade
cibernética e seu imenso potencial de fomentar a expressão individual esteja sendo
aos poucos soterrada sob esse ambiente cada vez mais dominado pelo comercialismo.
O mercantilismo acima de tudo, o (fabuloso) faturamento dessas gigantescas empresas
a níveis ilimitados, a priorização da publicidade de todas as maneiras possíveis,
em cada canto da tela possível, tudo isso está tornando a atividade online terrivelmente
pobre, frustrante e exasperante. Pior: estão nos tratando hoje como a tevê sempre
nos tratou: meros consumidores sempre sujeitos a toda e qualquer oferta publicitária,
usuários cada vez mais passivos com direitos de manifestação e intervenção cada
dia mais vilipendiados.
A mim pessoalmente me entristece que o
Brasil seja a “segunda maior audiência” do Facebook. Não vejo “graça” nenhuma em
saber que milhões de pessoas estão, neste momento em que escrevo, vivendo exatamente
a mesma experiência. A maioria, talvez, escravizada sob aquelas horríveis fofocas
sobre as celebridades e suas vidinhas de insetos inúteis. Para quem esperava, como
eu, que a internet fosse acelerar a solução
dos graves, dos profundos problemas que enfrentamos há milhares de anos através
do aumento da conscientização, da educação e, consequentemente, duma ativa participação
social e política, é absolutamente decepcionante ver que os malditos publicitários
aos poucos vão transformando o sonho em pesadelo com sua insaciável gana por dinheiro
e poder.
Por fim, uma recomendação:
Quando você ler uma matéria ligeira dum
jornalista deslumbrado com a última novidade cibernética, tente descobrir quem está
levando alguma vantagem, Mark Zuckerberg ou você.