Tudo
bem, execro essa história de "mulheres e crianças" que morrem em
guerras em consequência da irresponsabilidade dos "homens".
Mas
imaginar não custa (quase) nada.
Então
vamos imaginar uma criança de, digamos, seis ou sete anos que nasceu na Faixa
de Gaza.
Finjamos
que é um menino. E que o nome do menino é Nasir.
O
pequeno Nasir não sabe o que é conforto, saúde, bem-estar. Não sabe o que é
"felicidade", essa palavra mágica que para Nasir não tem o mais
ínfimo dos significados. É muito provável que Nasir não tenha ideia do que possa significar "futuro". Para ele um grão da areia que voa na rua
bombardeada de seu vilarejo é mais importante que a "felicidade".
Nasir
está emparedado. Dum lado, os extremistas do Hamas, assassinos que não medem
esforços nem consequências para seus atos terroristas. Do outro, as forças
armadas de Israel, que deflagram ações retaliatórias contra o Hamas sempre que
este lança foguetes contra o território israelense.
Há
uma história por trás do conflito. Obviamente. Sempre há por trás do que quer
que seja.
A
guerra presente resulta dessa história. A existência de Nasir resulta dessa
história.
Uma
pergunta que, como poeta e filósofo bissexto, sempre me ocorre, é: até que
ponto cada um de nós, individualmente, deve arcar com o peso da história da
nossa família e da nossa gente?
Você
acha que é possível afirmar que a vida de cada um de nós não apenas em Gaza mas
no mundo todo depende, em maior ou menor grau, de fatores estranhos ao nosso
controle?
É
possível, sim.
Aqui
no Brasil, por exemplo, estamos sujeitos a acidentes de trânsito, a picadas do
aedes aegypti, à explosão dum bujão de gás no apartamento vizinho ou duma loja
de fogos três casas descendo a rua, a dar de cara na esquina de casa cum
vagabundo encharcado de manguaça e crack sedento não de grana mas de sangue, a
estar passando numa esquina ao lado duma viatura da PM que de repente sofre um
ataque do PCC.
Vamos
sopesar a nossa possibilidade de sobrevivência em relação à de Nasir. Um
matemático poderia calcular mais ou menos precisamente a estatística da
situação. Não sou matemático mas sei que estamos infinitamente mais aptos a
sobreviver aqui nesta terra de barbaridades do que Nasir na Faixa de Gaza. E a
história não é tão condicionante para nós quanto é para o pequeno mulçumano.
Cada um de nós no Brasil dispõe dum raio de ação relativamente amplo,
dependendo da nossa condição econômico-social. Basta trabalhar com empenho e
teremos assegurado nosso quinhão à felicidade. O raio de ação de Nasir é
simplesmente nulo. Nasir nunca alcançará felicidade alguma, não importa quanto
se esforce para consegui-la.
Me
vi inspirado a escrever este texto após postar um comentário no Estadão online
sobre uma notícia do conflito na Faixa de Gaza. Postei dois, cada qual em
resposta a outros comentadores que apoiavam a retaliação de Israel.
O
argumento dos pró-Israel é, indefectivelmente, o direito à autodefesa dos
israelenses.
Não
sou burro. É patente que eles têm o direito legítimo de se defender de ataques
que ponham em risco sua população e a integridade de seu território. História
que nos cabe a cada um à parte.
A
um dos comentadores no Estadão respondi que "Se um bandido te ameaçar cum
canivete e se proteger atrás duma criança e você tiver um fuzil nas mãos, você
vai fuzilar a criança para matar o bandido? Uau, então você é mesmo um sujeito
bem justo e imparcial. Rezo para nunca cruzar nem com o bandido nem com
você."
Os
que pretendem se orientar pela lógica pretendem que a guerra tem uma lógica.
Não,
senhores, não tem nenhuma, não. Só quem está longe das consequências nefastas
da guerra pode afirmar tão rematada bobagem. A lógica do ser humano feito de
carne e osso e sonhos e aspirações e sentimentos não é a mesma dos foguetes.
Embora muitos "pensadores" tendam a comparar alhos e bugalhos. (Estou
ciente da possível cafonice desta afirmação.)
Os
azevedos e carvalhos e saflates e boulos da vida se guiam pela lógica manhosa
da ideologia. Vão se alinhando ou desalinhando a cada uma das questões que se
nos impõem de acordo com suas respectivas tábuas.
O
que esse alinhamento frio e impessoal tem a ver com a tragédia de Nasir?
Absolutamente
nada. O que os hipócritas omitem quando batem seus martelos barulhentos cheios de soberba é que em geral estão mais preocupados com a justiça da guerra do que com o sofrimento humano. A justiça nunca pode ser evitada, a dor, sim. Apor um "lamento as mortes inevitáveis" no fim dum arrazoado não resolve a questão.
Nasir
que se foda por ter nascido no lugar etc na hora mais etc ainda.