Antes, um esclarecimento.
Escrevi este texto há alguns anos, quando
fiquei sabendo que o sr. Diogo Mainardi havia obrado uma peça contra Carlos
Drummond de Andrade. Busquei a tal peça na internet e bumba-meu-boi, tal como imaginara.
O sr. Diogo Mainardi tentava fazer picadinho de Drummond.
Por que o sr. Diogo Mainardi tentava
fazer picadinho de Drummond?
Porque Drummond, num determinado período
da vida, se tomou de simpatia pelo partido comunista. Chegou mesmo a dirigir a Tribuna
Popular, diário fundado em 1945 pelos vermelhinhos. Mas a carreira do poeta
como diretor de jornal teria vida curtíssima. Meros trinta dias depois de
assumir o cargo, Drummond pediu a conta. Percebeu de pronto que a burocracia
comunista não se coadunaria com sua agitação de homem permanentemente perplexo.
Nos anos subsequentes Drummond viria a descobrir que políticos em geral são
hienas dispostas a devastar tudo à sua volta e militantes comunistas em
particular, ratazanas que não hesitam em devorar a própria mãe se for pelo bem
da “causa”. Que causa é essa? A deles próprios.
No frigir dos ovos, Drummond se afastou do
comunismo e dos comunistas. Estes, raivosos que são, não o perdoaram,
naturalmente. Com a cisão, o poeta foi escalado como mais um inimigo da luta do
“povo” e tachado de reacionário e traidor, entre outros encômios. É mais ou
menos o método que aplicavam na URSS e ainda usam em Cuba, na China e na Coréia
do Norte. Num processo que é inverso ao da reciclagem de resíduos e restos, o
comunismo e adjacências converte seus dissidentes em lixo. Ou tenta, como no
caso em pauta.
Quando li o retrorreferido artigo do sr.
Diogo Mainardi, considerei que o combativo colaborador da Veja havia atacado
Drummond, agora de outro flanco, obviamente. O que importa é que resulta mais
ou menos no mesmo: Mainardi tenta reciclar o poeta, ou a imagem que o Brasil
tem dele, para convertê-lo em lixo.
O artido do sr. Diogo Mainardi sobre
Drummond é duma frivolidade ímpar. Tipicamente, se trata dum piripaque mesquinho
da primeira à última palavra contra o trovador
de Itabira. Mainardi nunca primou pelo comedimento e a imparcialidade. Jornalistas
há que se enchem de bazófia e prepotência tão logo se tornam poderosos. O
abandono à embriaguez do poder jornalístico ocorre mais amiúde do que ousam
sonhar nossas cabeças propensas a almejar a um mundo justo onde a imprensa
desempenha – ou deveria desempenhar – um papel nobre por natureza. Não é raro,
nem surpreendente, que o jornalismo aliado ao sucesso redunde em vaidade cega. Isso
vale mesmo para Paulo Francis, que pisou em grande estilo na jaca da
arbitrariedade inúmeras vezes, embora tenha sido salvo pela genialidade e a
erudição e o texto primoroso e o inconformismo ante os jecas que fazem gato e
sapato da nação.
O arrazoado desarrazoado do sr. Diogo
Mainardi contra Drummond é inacreditavelmente infeliz. Penso mesmo que o
despautério das invectivas esquentadas que dirigiu contra meio mundo talvez explique,
pelo menos em parte, sua desistência do posto privilegiadíssimo que ocupava na
Veja na luta contra o lulopetismo. O artigo vilipendiando Drummond me parece
sintomático de alguém que se deixou inebriar de poder a ponto de se achar no
direito de atacar as histórias individuais que não se alinhem com sua ideologia. Mainardi se pretende um cassador de reputações. Se auto-inclui deliberadamente no grupo dos que enxergam o mundo através de óculos binários. À direita, só anjos, à esquerda, estrume. A tentativa de alinhar mecanicamente
pessoas e fatos por um viés ideológico sempre traz maus resultados. Gente não
cabe num molde petrificado de simpatias e antipatias políticas. O comunismo de
Drummond foi passageiro, como o de tantos outros grandes poetas e romancistas. Eu
mesmo, na faculdade, cheguei a ensaiar um namoro com a Libelu, trotskistas
ultrarradicais que execravam stalinistas e maoístas por sua “paciência” com os “burgueses”.
O binarismo ideológico empobrece a análise e desqualifica o binário. Se este
cometer abuso de poder, então, na certa estará fora do jogo. Por isso mesmo é
que tanto Olavo de Carvalho quanto Marilena Chauí seguem sendo marginais – e,
em certa medida, irrelevantes – no debate político, e não estranharia se um dia
fossem flagrados aos beijos nos bastidores.
Finalizando, uma nota quanto ao estilo do
texto a seguir. O leitor logo perceberá que o autor – pois é – exagerou na ironia
e não raro resvalou para o sarcasmo. Hoje certamente fugiria desse estilo. Como
provaram Machado e o próprio Drummond, a ironia deve ser usada em conta-gotas. E
como amargamente constatamos eu e o próprio Mainardi, se mostra contraproducente
ou mesmo desastrosa quando aplicada em dose cavalar.
Em todo caso, vale a leitura.
Esquerdistas,
direitistas, quejandos e que tais
A alegação de que tudo é Ser (partindo-se da abstração
máxima de que Ser é o que é) não inquina a distinção
entre 'ser' e 'dever ser' que é de ordem lógica, perceptível
na estrutura elementar do juízo, que é o ato de
atributividade
necessária de uma qualidade a um ente, consoante o enunciado
básico S é P, ou S=P.
Miguel Reale
A mais tola das virtudes é a idade. Que significa ter
quinze,
dezessete, dezoito ou vinte anos? Há pulhas, há imbecis, há
santos, há gênios de todas as idades.
A verdadeira apoteose é a vaia. Os admiradores corrompem.
Nelson
Rodrigues
Há na orkut, santuário de narcisistas
indolentes, uma comunidade chamada Literatura. Não vejo ninguém sério
participando. Como também não sou sério, tentei. E logo dei no pé ao me ver
entre moleques e adultos subletrados que obviamente não têm algo mais útil a
fazer na vida. No início ria às bandeiras desbragadas com as postagens de quem
não leu nada e sabe tudo. Muitos são poetaços – poetas de verdade estão
perdidos por aí fazendo o que vieram ao mundo fazer, sem ânimo para provar aos
outros que não sabem do que estão falando. Os literatos orkuteros postam,
despudorados, versinhos hilariamente bisonhos. E em seu chamado perfil ostentam
orgulhosos um poema dum poetão. O campioníssimo dos patronos versejadores é o
Mário, gaúcho bom-mocista cujas quadrinhas sempre injetam uma injeção de
otimismo em leitores propensos às amarguras da vida e que as donas de casa
viciadas em telenovela guardam carinhosamente no coração.
A cafonice medra na orkut. Amigos
classificam amigos e a sensualidade de amigos por meio de estrelinhas e ao
mesmo tempo promovem um mercadinho de personalidades onde tentam se vender em
autopromoção, fazendo poses nobres sob citações de filósofos e estrofes dos
campeoníssimos Pessoa, Meirelles, Ana Cristina César, Clarice.
Clicando à matroca, vou parar na tal
comunidade Literatura. Leio sem vontade o primeiro tópico e fisgo “Mainardi”.
Estarão debatendo aquele rapaz que a cada fim de semana desfere umas cacetadas
em Lula e no peetismo, escolhendo a dedo temas que buscam causar frisson em
seus leitores cuja grande diversão é marcar um rolê na praça de alimentação do
Shopping Iguatemi? Hoje em dia, e na orkut, tudo parece possível. Chacal diz
que Polígono das secas é “pervertidamente
divertido”. Então fiquei de ler. Ainda não tive tempo, milhares de livros
aguardam disciplinados e em suspense minha atenção qual donzela cortejada sem
que eu, cavaleiro entediado de existencialismo apodrecido, consiga decidir qual
satisfazer primeiro.
Curioso que sou, vou lá assuntar o que os
literatos cibernéticos têm a dizer sobre o semanal inconformista.
A polêmica gira em torno dum artigo em
que Mainardi parece descer a lenha em Drummond. Fico surpreso, não por Mainardi
ser capaz de atacar o vate de Itabira, pois é um valente e portanto capaz de
tudo, e sim por nunca ter ouvido falar de tal artigo ou de tal paulada.
Por alguma estranha razão, me ponho a
imaginar o que o Silvio Santos teria a dizer do Drummond. E Xapolin Colorado?
Quanta gente por aí não terá desenvolvido conceitos fantásticos sobre o
itabirense sem que ninguém desconfie?
Busco no google. Ah, eis aqui. Crônica de
2002. Acho que ninguém mais se lembra. Foram tantas as emoções nestes sete
anos.
Outra surpresa: a Veja ainda tem
leitores. Já se passaram uns 6 ou 7 anos desde a última vez que li. A gota
d'água foi uma nota numa daquelas páginas de celebridades com comentários
frívolos contra o cantor Renato Russo, sugerindo que o rapaz estava morto e não
sabia, e na semana seguinte, para azar do editor, RR morreu de verdade e
tiveram de tocar às pressas aquele panegírico de capa elevando o cara aos
píncaros da glória, para deleite dos leitores e para horror dos que ainda
gostam de prezar um mínimo de coerência. Você pode dizer que, sendo eu um
irracionalista desavergonhado, não tenho direito de exigir coerência de quem
quer que seja. Só posso responder que pelo menos não me promovo como bastião
das causas nobres. E me afortuna um handicap que me isenta dum veredito mais
severo: ninguém me lê. E não ser lido me poupa dos bate-bocas entre
jornalistões da grande imprensa a se desdobrar em malabarismos na tentativa de
manter as contas do patrão no azul enquanto simulam algo que distraídos tomam
por dignidade.
Zap.
Na comunidade Literatura o título do
referido tópico é: “Só eu que acho o Drummond um porre?”
Como vivo estranhando tudo e mais um
tanto, estranho. Será um título do próprio Mainardi?
Pois já começa mal. Na minha terra, achava
que “ser um porre” devia incluir os significados que a nossa cabeça
naturalmente associa a encher a lata, tomar um pileque e adjacências, escapar
do fardo da realidade, sonhar acordado, mesmo que só etilicamente. E não
entendo muito de meios de comunicação nem de poetas, mas em se tratando de
porre sou mestre. É um dos mais eficazes antídotos que conheço contra o
racionalismo mentiroso.
Zap.
Já virou clichê dizer que Mainardi remeda
Paulo Francis, mas de Francis ele não assimilou a erudição, a cultura ou a
verve, digamos, cruzadista e muitas vezes autocontida para não chocar fregueses
mais autossatisfeitos. Mas pôde copiar o faro para a encrenca e aprender
algumas técnicas de automarketing. A diferença é que Francis não soava fingido
qual Mainardi, cujos textos podem ser tudo, menos convincentes. E Francis tinha
um timing inigualável na autopromoção, sempre tirando proveito circularmente da
vocação de cabotino (ou saltimbanco, como gostava de se descrever), sem pudor
de soar histriônico e sem medo de abusar da própria fanfarronice para tirar
bons efeitos estilístico-sarcásticos. Mesmo escrevendo em jornal, não dava
muita pelota para o papel de jornalista responsável que esperavam dele. (Luxo a
que, obviamente, só quem tem muito poder pode se dar. Ele só veio mesmo a não
dar pelota alguma quando já tinha audiência cativa, também na tevê, e se
tornara habitué de resorts de seus amigos banqueiros e empresários, embora,
para quem olha daqui de longe, tenha pisado com excessiva ênfase nos calos dos
nanabos da Petrobrás e quebrado a cara no affair.) Chutava na direção em que
apontasse o nariz, não se importando se fizesse gol contra, misturando
deliberadamente verdades com minhocas subidas à cabeça direto do fígado, lixando-se
para o factual. Eu ria à farta. Quando criava encrenca com algum medalhão do “cenário
cultural”, então, ficava deliciosamente furibundo, furibundo como já não é
possível ser, porque termos como furibundo jamais farão parte do vocabulário de
2 dúzias de grunhidos dos frequentadores de portais de relacionamento, tendo
perdido a razão de ser depois do politicamente correto e do predomínio absoluto
das novelas como substrato da nossa civilização. Arrumou bons arranca-rabos com
fariseus jornalistas, professores-doutores et al. (Mas não tantos quanto eu
gostaria.) Certa vez o primeiro ombusdman do Folhão, de cujo nome não lembro
nem quero lembrar, houve por bem chamar Francis às falas por imprecisões em
seus artigos. O homem subiu ao seu olimpo e de lá disparou uma saraivada de
apodos letais que terminaram por esfarelar o atrevido. Nunca vi ninguém ser tão
massacrado na imprensa, massacre que prosseguiria ad infinitum se a editoria
não tivesse dado um basta. Curiosamente, Francis era melhor nos artigos que na
ficção. Seus romances não pegaram, não como ele esperava. Provavelmente porque,
embora brilhante, nunca chegou ao Francis S. Fitzgerald que almejava a ser. Ao
contrário de Fitzgerald, seus livros não conseguiram ir além de um encantamento
algo servil e — horror — jeca (termo preferido dele mesmo e de aspirantes a
francis para espicaçar desafetos) ante os endinheirados do smart set carioca. Seu melhor, para seu próprio desgosto, é o
genial autobiográfico Afeto que se
encerra. Ficou (muito) decepcionado consigo e com todo mundo. Queria que o
ombreássemos aos grandes da literatura. (Quem, escritor, não quer?) Dizia que
as escolas deviam adotar Machado, Rosa e Francis. Pfui.
Com a aproximação da velhice, enlevado no
papel de pensador iluminado da direita, Francis foi passando de peculiar a
extremista, exagerando na rabugice e na prepotência até viajar no caviar como
quando reclamava do excesso de nordestinos e gente feia nas ruas de Sampa,
sempre no estilo blasé que seus discípulos adoravam. (Antes que termos como
blasé caíssem na boca do populacho.) Entusiasmado com a aclamação popular, não
raro sofria ataques totalitários. Seu exclusivismo social fez escola entre
órfãos ideológicos em busca de rumos. O totalitarismo tem solo fértil em gente
sem caráter que confunde a incapacidade de aceitar a feiúra e a sujeira como
parte da existência com bom-gosto e, palavrinha besta, requinte.
Dia desses ganhei um dos volumes da
antologia d'O Pasquim e me surpreendi
como o Francis recém-chegado a Nova York era diferente daquele que anos depois
se entregaria vencido ao narcisismo. (Em Minha
razão de viver Samuel Wainer o qualifica de guru da classe média, em
aparente acerto de contas que é insondável aos de fora do círculo. Parece que
tachar alguém de guru é prática meio antiga.) O Francis d'O Pasquim já era
exibido, ainda não à morbidez, com uma força estilística assoberbante que no
fim, rico e paparicado, trocaria pelo autoarremedo. Talvez pudesse ter sido o
grande escritor que não foi se não alugasse o teclado a seus camaradas
banqueiros até finalmente virar foodie
e enumerar o cardápio do Four Seasons toda quinta e todo sábado na Folha e
depois no Estadão.
Ainda revisando o Pasquim, também me
lembrei de como achava sacal Ivan Lessa e todos aqueles pseudônimos sem sentido
e gracejos bobos. Hoje, ilegível. É daqueles que escrevem bem mas não têm
assunto. O pai e a mãe dele eram melhores.
(Um dia imaginei uma crônica em que Lula
lê uma página (umazinha só) qualquer de um livro qualquer de Philip Roth. Na
minha imaginação eu estava inspiradíssimo, rindo das minhas piadas, digitando
sem hesitar, o texto se avolumando dentro da minha cabeça, as ideias se
encaixando. Como quase sempre acontece, logo deixei pra lá, esqueci tudo que
tinha digitado mentalmente e me desinteressei do assunto. Hoje tentei refazer o
exercício, não saiu uma linha, achei o assunto totalmente sem graça, não tenho
mais saco de escrever sobre o Lula. Ou de ler.)
Andei relendo um dos livros de Francis, Cabeça de papel. Seriam três Cabeças (além de Cabeça de papel, Cabeça de negro; o terceiro, que seria denominado simplesmente Cabeça, não chegou a ser escrito), sem grandes diferenças entre
eles, sobrecarregados de barroquismos e penduricalhos à la Tom Wolfe sem
tutano, excesso de truques e escassez de recursos, um ritmo acelerado remetendo
a uma erudição sufocante para que o leitor fique meio zonzo, perturbado na
marra, sem chance de se dar conta de que o autor não fala nem dele, leitor, nem
dos outros ao seu redor, trama e personagens transfigurados sob uma estranha
ilusão de que não há vida possível fora das redações e longe dos apês-palacetes
da Vieira Souto. (Há, sim. Só que é mais difícil prospectar. Você tem de ter
uma índole meio de toupeira, com toda a dor que isso implica, cavar além das
fachadas dos prédios e das caras, correr o risco de ficar sem ar lá no fundo.)
Se você tem o azar de não ser rico/poderoso, mate-se. Francis conseguiu tirar
uma fina da arte mexendo apenas com o banco de dados que mantinha na memória e
a capacidade sem igual de engatar a língua diretamente ao pensamento sem
circunlóquios, freios ou filtros. (O que não é tão fácil quanto possa soar aos
ouvidos de quem não escreve a sério.) Em minha releitura, abri o livro e fui
indo e quando vi estava no fim. Isso é, acho, prova de que era pelo menos
legível, ao contrário de nove entre dez astros do firmamento literário do
Berção.
Nos tempos d'O Pasquim não havia muita
opção na imprensona, lembro de articulistas chatos como o próprio Drummond e
Flávio Rangel na Folha, Raymond Aron imperdível no Estadão dominical cujos
artigos deviam equivaler a umas 2 bíblias e que levava um dia inteiro para
deglutir, impensável nos mequetrefes em que se converteram os jornais de hoje
com seus zés-simão e as malditas celebridades no alto da primeira página e essa
onda de competir com a tevê, que fatalmente vai aniquilar os jornais. (Prezados
magnatas da imprensa, querem reverter a queda diária na tiragem? Então parem de
mirar quem assiste o jornacional e comecem a escrever para quem gosta de ler.
Kartoffel. Ainda os há, acho.)
O Pasquim foi uma escola estilística, o
que não é nenhum achado e nenhuma originalidade. Muitas das sacadas, truques e
bordões que correm por aí ainda hoje nasceram lá. A maioria feneceu junto com o
hebdomadário, ou seja, só tinha força no conjunto. Exemplo é Sérgio Augusto,
para mim ilegível no Estadão, rezingando faltas de assunto num mansinho que às
vezes beira o rançoso. Millôr era, qual hoje, uma no cravo e duas na ferradura,
humorístico e trocadilhesco demais para ler amiúde, prenunciador do tolo José
Simão com suas piadinhas deliberadamente redundantes em torno das estrelas da
tevê próprias para quem precisa ler várias vezes até entender, contágio da
repetição tantalizante das imagens na tevê e na internet. Henfil era cara
digno, esquerdista se lido hoje. Todos os homens de boa vontade éramos sob a
ditadura. Até, cruzes, Francis, no começo, o que ele mesmo gostava de alardear,
hoje sabido, soando apenas como mais uma verdade dum sujeito relativamente
verdadeiro em suas mentiras e contradições, que é o mínimo que podemos pedir.
Na época, ao vivo, outro papo. Mudou para Noviorque, caiu de quatro ante o
capitalismo. Na época, não lembro direito o ano, uma linha telefônica chegava a
custar, cruzes, cinco mil dólares, telefone era patrimônio, herdeiros brigavam
a foice para ficar com a linha no inventário, famílias economizavam décadas
para ter uma. (FH merece uma estátua para cada uma das privatizações das
estatais. Peetistas reclamam que ele as vendeu a preço de banana. Teria sido
bom negócio para nós pagadores de impostos mesmo que as tivesse doado.
Peetistas hoje estariam pagando 2 mil dólares por um celular se a telefônica
ainda fosse estatal.) Francis em seu diário da corte nos matava de inveja
contando ter quatro ou cinco linhas em seu apê, bastava um telefonema pro
freguês descolar mais uma com três ou quatro vendedores de telefônicas na porta
implorando para ser escolhidos. Com Francis Roberto Campos, que então
chamávamos Bob Fields fazendo coro com Henfil, deixou de ser anátema. E o
próprio capitalismo. Talvez algum mestrando da USP se disponha a esquecer o
baseado por algumas semanas e levante até que ponto Francis e congêneres
contribuíram para que preservássemos o que nos resta de urbanidade? Dilma vem
despontando lá longe enquanto tento decidir em qual embaixada pedir asilo.
Francis vivo era meio inanalisável. Como,
lilarirari, toda pessoa de talento autêntico. Esses anos todos passados, dá
para ter uma ideia. Podemos começar pelo espalhafatoso silêncio dos inocentes
de bacharéis que se calam ante o abominável Lula e não param de tagarelar
quando não têm nada a dizer. (Não consigo mais engolir Antonio Cândido depois
que ele confessou abjetamente venerar o nosso pequeno caudilho e sua tirania
light, dizendo-o “inteligente”, como se inteligência fosse elogiável per se.)
Não sei se há teses e dissertações sobre Francis. Talvez algum aprendiz de
bacharel tenha acordado da letargia festiva que é a vida universitária e obrado
uma.
Quando ele morreu tive um insight do
vazio que ia deixar. Fácil prever, antes não tinha ninguém. Do Nelson Rodrigues
jornalista peguei apenas um tico. Por que não li as crônicas dele na
adolescência? Não se publicavam em Sampa? E Francis, talvez por ter sido nativo
do baby boom dos amadurecidos sob as reviravoltas do fim dos anos 60, cuidava
para importunar o bacharelesco em cada linha. (Para mim pessoalmente, razão de
toda uma vida.) Engraçado quantas décadas o nosso modernismo, tirante cabras
como Mario e Oswald, tardio demorou para vingar no Berção. Depois de Bernhard,
Gombrovicz, Hemingway, para ficar nos grandes, depois de notas do subterrâneo,
ponta-pé inicial do que se escreveu no século passado, depois do próprio
Francis ainda tem gente incapaz de fugir do inferno do edificante, do
bom-mocismo dos encastelados em capitanias hereditárias em folhões e quejandos.
(Jaguar conta que a primeira entrevista
do Pasquim, com Ibrahim Sued, saiu crua a público porque ele, Jaguar, ainda
verde, não sabia o que era copidescar. Assim inaugurou-se o coloquialismo na
imprensa, quase 50 anos depois da Semana de Arte Moderna. Para variar, outro
grande passo da humanidade movido pela acidentalidade, que nos rege a todos da
inseminação do óvulo ao cemitério, ao contrário do que pretendem astrólogos,
marxistas e cozinheiros. Os jornalões ainda hoje insistem no copidesque para
filtrar suas matérias de impurezas da alma. Quando muito, enfiam um “risos” nas
falas dos entrevistados a título de informalidade. Não adianta, o rigor mortis
é a nossa sina.)
Francis era a bête noire de bacharéis e
esquerdistas entricheirados em empresas do estado dizendo-se compadecidos do
populacho explorado enquanto mamam nosso sangue. Salvo engano, não tinha
diploma (se tinha, me corrija um fiscal biográfico aí). Raro o dia em que não
espinafrava à insignificância esses professores-doutores que suam a camisa de
tergal e a gravata combinando para parir três paragrafozinhos sonsos. A
cafonice do intelectual bourgeois obcecado por pregar na parede da sala um
papel emoldurado em lenha saqueada à Amazônia exibindo seus troféus de
fancaria. Podes crer, nem tudo que macaqueamos dos americanos é digno de
macaquice.
Além de Nelson não havia muitas opções.
Escrever coluna regular é fatal. Exemplos abundam, aí está o Verissimo e seus
gracejos a se repetir ab irato há
séculos. Que é que Verissimo pensa do que quer que seja? A última opinião que
ouvi dele foi há anos, a favor de Lula (mas pelo menos era uma opinião). É
chato ver alguém inteligente ficar de boca fechada diante da selvageria benigna
do lulopetismo, que vai instilando na macacada de mansinho, sem dar muita
bandeira qual seu confrade brutamontes Chávez, mais chegado à bufonaria. (A
última de Lula, no momento em que escrevo, é o bolsa-celular, bônus a quem
participa do bolsa-família, com 7 reais de ligações pré-pagas mensais, além do
que ouso me indignar. Não adianta, o sujeito deu um nó na tucanada e não vai
largar o osso tão cedo. E a macacada tem o que merece. Lula demonstrou que
odeia a fundo o País e que nos deseja tudo de pior escalando a alfabetizada
Dilma para sua sucessão (a dona foi assaltante de bancos, será verdade? Jesus.
Morro de medo de armas. Certa vez estava no sítio de um primo quando ele me deu
um 38 para atirar numas latas e fiquei em dúvida se disparava contra a própria
cabeça. Graças aos céus Lula proibiu o acesso a armas de gente como eu). Lula,
espertérrimo, mantém os sindicatos a filé mignon à custa dos fundos de pensão e
empresas do governo, caso um dia precise duma “mobilização” para amedrontar as
classes médias. O que nunca será necessário, obviamente. As classes médias, e
as outras também, estão e sempre estarão bem quietinhas comendo pizza de
calabresa assistindo o Big Brother.) Verissimo talvez fosse grande, tivesse
peito. Se reserva o direito de ficar calado. Não é bobo, pra que se comprometer
à toa? Aquelas piadinhas na última página do Caderno 2 são constrangedoras,
joão sem braço face à roubalheira peetista para não dar munição à “direita”,
mais uma vez a ideologia fazendo as vezes das ideias.
O bacharelato despreza escritores que não
paguem a devida deferência ao beletrismo (há séculos combatido por todo
escritor que se preze) e ao perene neoparnasianismo que nos atazana qual praga.
Entre outras razões, porque são refratários ao método, o mesmo método que
trouxe o planeta à beira do abismo em que está agora. (Declaração mais
desprovida de método, essa.) As crias que doutos, cientistas, lógicos e
estudiosos engendraram nos últimos cinco mil anos de civilização, “potencializadas”
depois da Revolução Industrial, culminaram nesta nefasta era da informação de
progresso sem limite e esta na distopia presente. O homem como medida de todas
as coisas de Protágoras sifu. A dimensão humana começou a soçobrar sob a RI com
a mecanização da produção até virar adubo hoje sob a comunicação instantânea
diabólica do celular e o lazer infinito e permanente da tevê e da web e a
armadilha da gratificação constante em que a molecada se viciou. As próximas
gerações serão cada vez mais abstratas.
(Como, infelizmente, em breve terei de
partir para sempre deste vale de lágrimas, sem direito a retorno como querem
espíritas e outros místicos delirantes, tomara que lá no céu tenha tevê a cabo
para eu ver como é que meus pósteros vão se virar. Por aqui me sinto num mato
sem cachorro, certo, questão de vocação. Queria saber, entre outras, que fim
vão dar a vovôs e vovós de 150 anos e seus corpitos sarados mantidos a doses
cavalares de química mais escalafobética a cada dia. Pelos sinais ao meu redor,
em poucos anos estarão todos livres do câncer e de outras tragédias e de vírus
como aids e mesmo de degenerescências como alzheimer e parkinson. A perspectiva,
parece, é o prolongamento continuado da longevidade. Só tem um probleminha: os
azimovianos curandeiros não conseguirão inventar um analgésico para o espírito.
Nossa experiência “humana” não tem como sobreviver a mais de cem anos. Há dois
meses perdemos na família nossa avozinha de 96, nos últimos anos eu vendo
aterrado nos olhos dela que o fardo do corpo ia pesando mais e mais e mais,
tendo os “motivos” se acabado todos. A regressão à infância no corpanzil de
quase um século é desesperadora. Prazer, nenhum. Interesse, lhufas. Paparicada
dia e noite por filhos e netos, torcia o nariz, praticamente implorando que o
fim viesse logo. Restou apenas o império do presente, até o passado e o que
pudesse guardar de reconfortante se dissipou. Melanie Klein dizendo que o idoso
tem por função transmitir vivência aos mais novos é lorota. Duvido que alguém
de 150 anos com corpo são e cérebro relativamente lúcido ache algo interessante
a fazer. Há décadas Suíça e Holanda têm clínicas a que anciãos endinherados na
casa de oitenta, noventa e cem acorrem para comprar a peso de ouro uma
eutanásia que lhes permita enfim descansar. É óbvio, e todo óbvio é
intolerável, mas não posso conter o touché de que lutamos cinco mil anos para
derrotar a natureza e tudo que ela nos guarda de nefando, e o trágico só faz
aumentar. Me compraz e consola que tudo pareça estar minguando. Certo, são
minhas teorias mais pessoais e poéticas e esquizóides se comprovando. Tenho
pouco, ou nada, a perder. Sempre tive a morte por companheira nata. (Putz, essa
saiu sem querer. Como digo sempre, a poética — não a poesia — me dá nojo.) E
falta falar dos chinas. Os caras mal começaram. Estão na revolução industrial
lá deles. Mês passado a ministra da economia chinesa disse que eles precisam
gerar 300 milhões de empregos nos próximos dez anos para sustentar a macacada
que está fugindo do campo para as cidades. Holy cow, Lula não consegue gerar
300 sem destruir metade da Amazônia e estorricar meio Pantanal. Não preciso de
bolsa do CNPq para concluir que daqui a trinta anos, a China líder mundial,
mais dois bilhões irão se juntar aos escravos se esfalfando 16 horas diárias
para trocar de celular no fim do mês, tirando do planeta o que não há mais a
tirar, produzindo everests de lixo que não há onde enfiar, não é preciso nobel
para concluir, o fim se assoma no horizonte. Há alguns anos a crise do petróleo
parecia indicar que os gênios da espécie acabariam por descobrir um substituto
energético que nos salvaria a todos do colossal banho turco regado a ácido
sulfúrico em que vai se convertendo nossa velha Terra, mas eis que Lula, quem
diria, deu de descobrir uma mina de petróleo atrás da outra e com isso os
homens de cérebros fabulosos não se motivam a engendrar a tal da alternativa. E
não falemos também de europeus que já começaram a se autoexterminar porque não
toleram crianças e não querem mais se reproduzir e, se o mundo não acabar,
serão reduzidos a meia dúzia no próximo século. É engraçado que cientistas
malucos aliados aos homens sensatos que fizeram do planeta o que ele é, capazes
de inventar as mais inimagináveis bugigangas para que todos esquecêssemos a dor
intrínseca de viver, sejam incapazes de forjar um spray teratogênico que limpe
o ar num passe de mágica e nos tire desta enrascada. Mas deixemos a salvação do
planeta para o talentoso Lula e estadistas de igual quilate e voltemos à nossa
hilária comunidade Literatura. Eu dizia que... Só um minuto, vou ter de voltar
lá pra cima... Ah sim, falávamos do Mainardi e sua invectiva contra Drummond.)
É mister reconhecer que o nosso
subfrancis se empenha para produzir seus traques e truques à custa de
resfôlegos, cambaleios e tropicões. Vive há anos de chutar o Lula. (Assim, até
eu.) Deve estar duro de arrumar assunto agora que o pequeno tirano virou
unanimidade, mesmo para os deslumbrados que veem Veja. (Ética é legal. Mas
cuidado com o balanço. Ninguém quer prejuízo.)
Para deflagrar suas polêmicas estudadas e
pífias, Mainardi criou uma lista “Temas mais afeitos a gerar forrobodó” e saiu
por aí soltando balões estufados de ar. Não sei que outros papos-furados ele
tem jogado para cima de suas fãs. Se forem da altura dessa aí sobre o Drummond,
então estamos mal.
Certa vez bati boca pela orkut com a
presidenta do fã-clube do cara, perguntando se ela não tinha vergonha de
pertencer a um fã-clube, aquela piadinha do Marx, mas essa é, acho, outra
história. A boçalidade que impera na orkut me fascina. A orkut se presta legal
a fins antropológicos. Acho que o professor DaMatta deve ter parado de observar
os brasileiros na rua e agora vive clicando em sites de relacionamento, que de
relacionamento não têm nada. A comunidade Fora Lula com seus maníacos
histéricos esgoelando palavrões e exigindo golpe militar conseguiu a proeza de
afugentar para as hostes lulistas internautas que estavam indecisos. (Golpe
neste terceiro milênio? Em Honduras pode ser.) Mainardi logrou o mesmo feito,
só que sozinho (que talento, dio mio), depois de ficar anos dando a queda de
Lula por certa e queimando a língua a cada previsão, até virar contraditório
profissional e tentar vender seu peixe com a pose do intelectual
errar-é-humano. (Virou moda com Sartre. Todo mundo cai ante uma profissão de
humildade.) Veja teve de mandar o rapaz segurar a onda porque estava
inquietando os frequentadores do Iguatemi que veem a revista. Tudo que o
pessoal quer é tranquilidade para torrar 2 pilas numa calça jeans de grife sem
dor na consciência. Obsessivos assustam.
Parece que Mainardi não existiria como
tal não fosse um empurrãozinho dado por Francis lá nos idos dos 80 ou 90.
Tinham feito amizade e Francis devotava lealdade canina aos amigos, ao que
parece sem olhar os dentes. (Fazia propaganda para o Maluf dizendo que seria o
maior presidente do Berção, o que eu entendia como licença poética. Aos grandes
se deve perdoar (quase) tudo. Inclusive Drummond. Há uns tempos andei tomando
umas e outras cum malufista, rapaz bem inteligente, prova de que ideologia
pouco tem a ver com inteligência.) Não sei exatamente como, onde ou quando
Francis se deixou encantar por Mainardi. (Certa vez também desandou a elogiar
Matinas Suzuki Jr., que logo depois virou editor da Folha. São difíceis de
entender os caminhos e descaminhos que trilham esses barões da imprensa.) Dizem
as boas línguas que tem algo a ver com Gore Vidal. Não posso garantir, pois não
estava presente.
Zap.
Mainardi é daqueles que gostam de bater o
martelo. Dá marretas a torto e direito gostosamente. Quando o leio me vejo
diante dum juiz. Imperial. Severo. Impiedoso, como soi ser todo ginete da
justiça. Se pudesse faria uma limpeza lírica no mundo, talvez equivalente à
étnica outrora intentada pelo vegetariano Adolf. “Comigo não tem conversa” é o
recado que parece querer passar. Presta-se à perfeição ao seu papel de guru.
(Fiéis que cultuam gurus políticos são os mais derrisórios, pois se acham in, eleitos iniciados numa verdade fora
do alcance do coitado do outsider.
Estão no meio do rebanho como qualquer ovelha, mas em vez de balir, rugem. Deve
ser algo relacionado a vocação, mas não deixa de ter suas vantagens.) Escolhida
a vítima, vai assentindo vorazmente com a cabeça em cujo interior certamente
jaz alerta um poderoso cérebro de cuja perspicácia os pobres drummonds deste
mundo jamais lograrão fugir.
Logo no título o soberano decreto: chega
de Drummond. Quis desistir, falei para mim mesmo, não vale a pena. Esperei uns
minutos. Tudo bem, aquela estátua em Copacabana é assaz cafona. Mas Drummond
não tem culpa. (Embora duvide que se opusesse, vivo fosse. Eu também não me
oponho se quiserem erguer uma em minha homenagem na praça da matriz de
Heliópolis.) Fui tomar um balla 12, traguei logo 3, para não dizerem que não
sou um rapaz de boa-vontade.
À parte uma ou outra tirada sobre o
passado pregresso de Drummond — nada mais calhorda que escarafunchar o passado
alheio para levantar pecados. Quem nunca pecou, que atire a primeira boutade -,
não se dá o trabalho de documentar suas graves acusações. Duvido que suas
leitoras saibam onde o galo canta. Sendo um juiz austero mas, com perdão do
pleonasmo, justo acredita que seu veredito seja suficiente. Autoexplicativo em
sua sumariedade, parece comungar do clichê “Decisão de juiz não se discute”.
Drummond é idiota e pronto. Reduzir a pó uma das maiores personalidades da
literatura nacional parece ser apenas um aperitivo para tão insaciável sede de
justiça. O gorduchote Mainardi, trombeteiro da iniciativa privada, vai lambendo
os beiços enquanto devora o raquítico barnabé Drummond e seus pendores
socialistas, antecipando o banquete de amanhã. Mais que implacável, se pretende
iconoclasta. (Ao que parece, aspiração de nove entre dez estrelas da
intelectualidade.) Fora com os mitos! quer esgoelar. Chega de mentira sáfica
neste país! O paladino da antilira brasílica veio para botar o dedão na ferida.
Drummond não passa dum verme sempre disposto a inocular o vírus da mentira
trovadoresca no pobre leitor. Verdadeiro, só mesmo João Cabral de Melo Neto e
sua secura caatinguense, tudo dentro do sacrossanto espírito democrático.
Afinal qualquer um pode falar o que lhe der na telha e ninguém tem nada com
isso.
Zap.
Drummond meio que perdeu a mão na
velhice. Fez coisas mesmo constrangedoras, versinhos supersentimentalóides aqui
e ali, aquela proverbial desandada tentando emular os concretistas. E daí? Seu
fantasma não precisa passar a eternidade provando isso e aquilo a quem quer que
seja. Ao longo da vida escreveu bem e mal como qualquer outro poeta/escritor.
Isso não vai mudar só porque os espertinhos de plantão dizem que não devia ser
assim. Não há escritor que nunca tenha entornado o caldo. Todos acabam
cometendo barbeiragens cedo ou tarde, se repetindo, se autoplagiando, tentando
ressuscitar aquele primeiro estado de espírito em que a energia parecia
infinita e o olhar era capaz de identificar o novo onde quer que pousasse. Não
é batatinha assumir que o champanhe ficou sem gás, nenhum dos grandes
escritores que já li, aqueles notórios à parte, resistiu à tentação de mais uma
requentada no angu. Sempre chega a hora em que o escritor deixa de escrever em
primeiro lugar para si mesmo para querer contentar os outros, mendigar uns
elogios, reconquistar os suspiros da vizinha, o que qualquer outro em seu lugar
faria. Por essas e outras Rilke aconselhou ao jovem poeta Kappus: “Leia o menos possível trabalhos de crítica.
Obras de arte são de infinita solidão; nada as pode alcançar tão pouco quanto a
crítica”.
Zap.
O chato nesse ataque de Mainardi é o
motivo: o pusilânime Drummond teve a fraqueza de misturar poesia com fantasia,
sucumbindo a rompantes esquerdistas ao longo da carreira. (Muitas das pessoas
inteligentes que conheço passam ou passaram por isso. Monolíticos me dão sono.)
O esquerdismo franco ou velado em algum momento da vida é o que une os alvos de
Mainardi, basta ver o rol de suas vítimas.
Daí a mesmice das catilinárias. A
previsibilidade. Em sua próxima crônica, Mainardi vai atacar um ex ou atual
esquerdista tão certamente quanto o trânsito de SP ficará engarrafado amanhã
cedo. Afinal é o que suas fan-áticas esperam dele. Que delícia ter uma plateia
cativa. E que desgraça. A mim me sufoca.
Gurus, sejam da esquerda ou da direita,
fazem o que seus devotos esperam que façam. Exercem papeis. Seu script está
escrito e não há como fugir dele. Imaginar que algo assim seja possível me dá falta
de ar. Depois de ter lido essa gente uma vez, não há nada que me faça ler uma
linha uma segunda vez. Tenho certo respeito por Reinaldo Azevedo, cuja
inteligência e cultura salta aos olhos. (O melhor ataque à famigerada reforma
ortográfica que li é dele, texto que eu gostaria de ter escrito.) Outro guru
razoável de Veja é Augusto Nunes, estilista, domínio do vernáculo, engenhoso na
articulação dos parágrafos, afinado nas tiradas e nos apodos (“Exterminador de
Plurais” e “Base Alugada” são hílares), bem diferente dos textículos áridos e
desenxabidos de Mainardi, urdidos sob indisfarçável penar. O que empana o
brilho é aquele espírito de corpo, o compadrio com que um levanta a bola para o
outro. Que eu saiba, quem pensa tem de escrever o que pensa, não formar
aparelhos. E aquela claque diária em seus blogues. Jesus. A diferença de
Francis, além da genialidade, é que não toleraria a cambada de puxa-sacos iletrados
a seus pés, e artista, capitalizava as próprias contradições. Brutal diferença.
Sempre que escrevo celebro comigo mesmo a
suprema liberdade de não ter de dar satisfações a ninguém. Não preciso pensar
se fulano está alinhado desse ou daquele lado antes de enaltecer ou espinafrar
o cara. Sou livre dos malditos “parâmetros” dos carreiristas que não podem dar
um passo sem antes fazer cálculos mil sobre a conveniência ou inconvenicência
do que diz. Believe me, maior delícia não há. Me recuso a entrar para gangues,
legiões, agrupamentos, patrulhas ou milícias. Esse tipo de coisa me dá
claustrofobia.
Gurus ocupam espaços. Nisso não diferem
um tico das caminhandos e libelus dos meus tempos de ECA. (Às vezes avisto
ex-colegas bem-sucedidos em algum jornal ou tevê por aí. Parece que a
autodisciplina stalinista deu frutos.) São todos bispos e rainhas no grande
tabuleiro ideológico e não podem dar trégua ao inimigo.
A divisão das torcidas já deu. Jesus,
quem consegue levar Olavo de Carvalho ou Marilena Chauí a sério? Passar a vida
arremessando tomate nos adversários talvez seja bom para quem é chegado a uma
confraternização, os que não se avexam de mugir no meio do rebanho. Tenho
horror a tudo que cheire a ordem unida.
A maioria desses fanáticos escolhem seu
lado político religiosamente. Pensam que sabem por que pensam o que pensam.
(Com perdão pela recaída nos efeitos fáceis.) Direitistas defendem a livre
iniciativa como bálsamo geral, esquerdistas dizem que o estado deve intervir
para proteger os mais fracos. Todas essas ideias não passam de abstrações,
naturalmente. Só existem em livros e em discursos no Congresso. No Brasil, incomprováveis,
como muitas outras. Basta olhar para trás e ver. Mas olhar com coragem, não
olhos embaçados de fantasias ou cifrões. Na minha cabeça confundo capitalismo
com catolicismo e socialismo com islamismo. Lula não foi o primeiro nem será o
último dos nossos flagelos. Lula é o Brasil. Não há purgante racionalista que
nos livre disso. Dia desses FH causou comoção alertando em artigo no Estadão
para o perigo do continuísmo lulista. Mais uma vez os leitores babaram. Só que,
bidu, mais uma vez FH se esqueceu de quem foi o inventor da reeleição, a mais traumática
ruptura da ordem política dos últimos tempos. É fácil resolver pepinos num
artigo de jornal.
Leitores de jornais e revistas e membros
de comunidades respondem a tais artigos e a tais blogs citando Sócrates,
Nietzsche e outros menos cotejados, só para comprovar que vivem num estado
idealizado, saudosos do tempo em que podiam fantasiar com belas adormecidas.
Que bom seria se todas as nossas contradições pudessem caber numa citação,
afugentando nossas dúvidas bestas para longe. É gostoso ter só certezas. Nos
sentimos seguros de que estamos no caminho certo e o nosso mundo é
indestrutível.
Pena que essa ilusão da
indestrutibilidade esteja levando a Terra à destruição. Os hiper-mandachuvas
que vivem defronte o Central Park, capazes de movimentar 1 trilhão de dólares
num só dia e decidir os destinos de países inteiros num clicar de mouse, estão
se lixando para o fato de que daqui a 5 anos centenas de espécies de peixes e
mamíferos terão deixado de existir ou que nos últimos 40 anos os oceanos perderam
metade de sua capacidade de reciclar poluição e esgoto ou que o aquecimento
climático causado pelo gás carbônico está absolutamente comprovado apesar das
negativas do Lula americano, Bush, e seu sucessor Obama. O único consolo é que
nem mesmo essa gente poderá escapar ao Tsunami Final.
Discutir ideologia para mim faz tanto
sentido quanto falar de moda. Os discursos dolorosamente vazios de políticos
primários no Congresso e o arrazoado enjoativo de articulistas nos jornais
equivalem a um desfile de Giselle Buenchen na passarela. Enfarado com o que se
encena no palco, olho para o público. Parecem meros viciados em adrenalina.
Precisam reassegurar dia após dia que seus ídolos têm brios e não temem a luta.
Arrancam os cabelos discutindo o fim de Fidel. Qual é a importância de Fidel na
minha vida? Nenhuma. Certo, o campeão de discursos quilométricos serve de
inspiração para evos e chavez. Evos e chavez também não têm importância alguma.
Falar dessa gente é tão inútil quanto falar de Lula. Todo esquerdista e direitista
que conheço é esquerdista ou direitista porque não suporta não ser alguma
coisa. Não ter um idéologo a lhes ditar o caminho é o mesmo que flutuar no
vácuo, intolerável como renunciar à ideia da existência de deus. Saber que há
um ente acima do bem e do mal, em permanente vigilância, onisciente,
onipresente, ser tão perfeito que sua própria perfeição nos impede de duvidar
de sua existência, é tão reconfortante. Atenua um pouco o desamparo angustiante
em que a maioria de nós vive do primeiro ao último dia de nossas vidinhas de
formiga mas temos medo de confessar porque em nossa fragilidade não podemos
admitir que somos frágeis. Alguns se dão até o luxo de dedicar suas vidas ao
estudo de Derrida em busca de algo que faça sentido.