Foi este o recado que Alexander deixou grudado com fita crepe na tecla do intercomunicador do meu apê. Tínhamos marcado um programa ("marcar um programa" é um conceito engraçado para os ultradireitistas, pois eles sempre acham que programa é o mesmo que trepar) às 5 da tarde, mas me esqueci que teria de ir ao Detran resolver a clonagem da chapa do meu carro. Alguém estava usando um carro clonado para assaltar bancos e espalhar ameaças do PCC, e a essa altura até a Interpol já estava no meu encalço. Um homem, para ser capaz de chorar, tem de ser grande, e maior ainda para rir dum homen chorão, meu avô Teniro costumava dizer.
Como moro em Sanca e, estando sem carro, o único meio de ir a Sampa era o ônibus ou o subúrbio, dado que Marta suplicinha não tivera peito para estender o metrô até a cidade, isto significava que eu não chegaria à casa dele a tempo para uma bebida como tínhamos combinado. Eu não queria que ele pensasse que eu estava de sacanagem. Assim, enviei um email explicando cuidadosamente que tinha me esquecido de que ainda precisava escrever mais um artigo para o blog mas que iria logo. Já havia escolhido pelo menos o título do meu novo artigo: "Somos todos culpados, acho, de uma forma ou de outra". Quando contei a Alexander, ele praticamente ganiu, quase babando no copo de cerveja. O artigo começava assim: "Se você tivesse a chance de torturar um petista, que método usaria: esfolá-lo vivo ou amarrá-lo no pára-choques do carro e arrastá-lo pela cidade?" Não é preciso acrescentar que Alexander ficou sem fala, sendo obrigado a emborcar o copo boca adentro para se recuperar.
Conheci esse rapazola Alex (abreviatura brasileira para Alexander), que na época contava 30 e poucos anos, numa festa do Clube Social em 2006. Pra quem não sabe o que é o Clube Social, o nome é usado no Brasil para distinguir elitistas entediados que não sabem muito bem o que fazer da vida frívola que levam. O nome foi bolado por uma mocinha belga chamada Zelda Pattien Dreethinkar, cujos pais eram holandeses, da cidade de Orkutus.
Eu estava passando em frente a um desses restaurantes de 99 centavos espalhados como praga pelo País inteiro, quando aquele moleque me chamou atenção, ainda não sei bem por quê. Talvez fosse o enorme Rolex falso que ele exibia jactancioso no pulso do braço direito. Ou a expressão de devasso congênito no rostinho gorducho. Assim que se viu na calçada, a poucos passos de mim, ele voltou um olhar aflito para dentro do restaurante e em seguida me fitou, suplicando ajuda. Imediatamente percebi que ele tinha saído sem pagar. Ato contínuo, dois brutamontes surgiram na porta do restaurante. Eles já se preparavam para agarrar o rapaz (provavelmente iam arrastá-lo para os fundos da casa e lhe aplicar uma bela sova) quando tirei uma nota de 100 do bolso e estendi, exclamando:
-- Olha aqui o dinheiro para o almoço.
Os dois gorilas olharam confusos para mim e, notando minha fidalguia e elegância natural e meu semblante de nobre inglês, recuaram instintivamente. O rapaz, certamente acostumado a pensar rápido em situações que tais, apanhou a nota estendida à sua frente e a ofereceu aos vigias, rindo:
-- Calma, seus mané! Eu só vim pegar a grana com meu tio aqui.
Naquela noite fomos nos conhecer melhor no Redondo, esquina da Consolação com a Ipiranga. Falando em francês, holandês e alemão, fiz notar a ele que os restaurantes de 1 real eram bem melhores, que isso de 99 era coisa de ralé petista, golpe de marketing, até perceber que o rapaz era monoglota. Sem nos darmos por achados, nos entregamos sôfrega e longamente um ao outro numa mesinha semioculta no lado Consolação do Redondo, expostos aos olhares dos milhares de contínuos e secretárias que deixavam seus trabalhos àquela hora da noite.
Alex não passava dum frangote dengoso e meigo. Viera de Santos, a mesma cidade na qual alguns dos meus antepassados italianos tinham aportado em 1894. Mesmo em português, idioma que em geral me dá sinusite, ele me contou que passara alguns maus bocados depois que chegara a Sampa. Caí na gargalhada, explicando que ninguém mais usava aquela expressão e que ririam dele toda vez que falasse daquele jeito. Ele aparentemente compreendeu, dizendo que não ia se esquecer da minha recomendação.
Não foi necessário muito tempo para eu perceber que Alex era desmiolado (embora, ao que tudo indicava, não perigoso). Acho que se poderia considerá-lo meio demente por causa de suas superstições. Mas não se comportou mal durante o breve período em que nos relacionamos.
Quando passeávamos pelas ruas dos Jardins ou pelas alamedas do chópin Iguatemi, ele de repente se voltava para mim e exclamava sem mais nem menos:
-- Eu não vejo a menor graça nos palhaços. Na verdade, tenho medo deles. Não sei quando isso começou. Mas, olha, nunca me convide para ir a um circo.
Ou então, no cinema, no meio dum filme de Spielberg (que são os únicos que assisto), ele apertava minha coxa e sussurrava no meu ouvido:
-- O único momento em que me sinto realmente feliz é quando estou chupando mexirica.
Havia também momentos em que ele me preparava antes de emitir seus comentários desconcertantes. Essa preparação sempre começava com um anúncio:
-- Estou com vontade de matar alguém!
Para mim, aquela gana assassina não era de estranhar. Durante algumas semanas anteriores, eu tivera oportunidade de conhecer as (más) companhias com que Alex ingenuamente andava. A cada novo dia, saíamos pela cidade feito Cleo e Daniel, cegos, devairados (mais ele do que eu, pois que, talvez por já ser calejado, eu procurava não me entregar complemente aos delírios da paixão, sempre mantendo pelo menos um dedinho do pé na razão). E nessas andanças pude conhecer um pouco da personalidade do mancebo.
Não demorou muito para que eu eu concluísse que o rapaz era necrófilo. Seus círculos de amizade todos tinham alguma relação com a degringolada. De seus amigos, uns pertenciam a esquadrões da morte, outros eram torturadores, outros ainda cultuavam a morte como fim supremo da vida. A maioria deles não tinha outro assunto senão vingança, guerra, assassinato e outras delícias que tais. Muitos enchiam a boca para descrever seus arsenais de combate. Uma característica interessante em todos era a obsessão doentia que nutriam por Che Guevara. Faziam questão de estampar em suas camisetas umas fotos que tinham acabado de ser trazidas a público em que Che é mostrado com ar torturado e cadavérico.
Alguns dias depois chamei o rapaz a um canto do Redondo e disse:
-- Olha, não é por nada, não. Mas você precisa parar com essa mania de morte, meu chapa. Isso ainda vai te deixar maluquete da silva.
Como se já esperasse pela minha admoestação, ele soltou uma bomba, uma verdadeira bomba literária:
-- Se as árvores pudessem berrar, nós não as derrubaríasmos com tanta facilidade. Isto é, desde que elas não berrassem o tempo todo.
Bem, assim o tempo foi passando, até que, no dia em questão, nos encontramos em frente ao meu apê às 16:43 conforme o planejado. (Bem, não exatamente conforme o planejado.) Fomos a pé até um bar-restaurante chamado La Tambouille (ou "rango", para quem não manja finlandês), que tinha um enorme neon da Heineken na entrada.
Tomamos alguns drinques e falamos por mais de 7 horas, o que, na cultura brasileira, é considerado apenas um bate-papo, indício de um bom começo entre duas pessoas que se amam -- ou pretendem se amar num futuro não muito distante.
Não me recordo muito da conversa. Mas uma coisa de que me lembro bem foi como Alex riu debochado de um petista que entrou no restaurante. Não era o estereótipo brasileiro de petista com cueca negra e jaqueta cheia de bolsos e fundos falsos, etc., e sim o estereótipo do petista pós-Clube Social -- o tipo que zanza pra cima e pra baixo numa enorme e potente aeronave japonesa multi-colorida e vistosa. Usava uma roupa de couro colorido própria para missões arrecadatórias. Ele entrou como se fosse um supermodelo inglês, levando o bonezinho brilhante não em seu coiffure de estilo castrista, e sim pendurado no cotovelo.
Geralmente não presto atenção em comportamentos arrogantes desse tipo e sequer me recordaria deste sujeito não fosse pela reação de Alex. Ele soltou uma gargalhada indiscreta, descontrolada, quase histérica, encarando diretamente o recém-chegado. Eu fiquei apreensivo quanto à possível reação do petista, pois, como todos sabem, essa gente é de origem peão-sindicalista. O carinha, porém, estava tão cheio de si, que o escárnio de Alex lhe passou completamente despercebido.
A maioria dos rapazinhos de extrema direita brasileiros daria um salto de excitação se um petista entrasse engalanado daquele jeito, mas Alex fez uma careta de desdém. Foi a partir desse momento que passei a admirá-lo. O desprezo que demonstrou à falta de modéstia do outro foi para mim uma grata surpresa.
Trocamos algumas impressões sobre o grau de periculosidade que aquela espécie de "gente" representava às pessoas normais, nos perguntando espantados como é que as autoridades deixavam aqueles bichos à solta, para logo em seguida passarmos às confidências amorosas. Alex, abaixando a voz e me fitando com um olhar introspectivo e úmido, disse estar pessimista quanto a qualquer tipo de relacionamento com um homem. (Ainda mais um sujeito maduro feito eu, que na época contava 44 anos.) Acabara de se separar dum arquiteto com quem vivera por mais de um ano e estava ansioso e receoso de viver outra situação parecida.
-- O que houve, exatamente? -- perguntei, tomando-lhe as mãos entre as minhas. Percebi que estavam frias, talvez mais pelo problema circulatório que ele já mencionara no dia anterior do que pelos 12 graus daquele fria madrugada paulistana.
À minha pergunta, ele soluçou (um dos soluços mais dolorosos que jamais escutei em toda minha longa vida amorosa) e puxou bruscamente as mãos, cobrindo o rosto.
-- Não chore -- pedi, também já com lágrimas escorrendo pelos pomos. -- Tudo vai dar certo. É só dar tempo ao tempo.
-- É mesmo. Eu não havia pensado nisso -- ele disse, enxugando os olhos com um guardanapo de papel do MacDonald's que eu sempre levava no bolso e que lhe havia oferecido alguns segundos antes. Sempre que ia ao Mac eu aproveitava para filar o máximo de guardanapos que pudesse, e já não tinha mais onde guardá-los em casa. Esse hábito, tipicamente brasileiro, claro, fora o próprio Alex que mo ensinara.
Quando se refez do ataque de saudade do arquiteto, ele me convidou para ir a seu flat assistir um filme de Antonioni, o que topei imediatamente. Como vocês sabem, só assisto a filmes de Antonioni e de nenhum outro diretor.
Depois jantar, me disse enfático que não iríamos dormir juntos aquela noite. Era apenas o jantar e o filme, mais nada!
Depois fomos ao espaço São Paulo assistir a um documentário venezuelano. Acabamos vendo Je vous salue Marie, de Godard. Eu estava contente de poder ver essa comédia, pois tinha assistido somente alguns minutos na tevê alguns anos antes, quando fora forçado a levar a um baile uns estudantes estrangeiros que tinham vindo conhecer a escultura rococó do Aleijadinho.
Então fomos ao flat na Vila Mariana onde eu costumava promover meus rendezvous. Até que era um apê bacaninha. O que eu mais gostei nele quando o corretor mo ofereceu foi um quadro de telefone pendurado na parede, mostrando um celular com um círculo vermelho, cortado por uma barra diagonal.
Assim que entramos Alex avistou a um canto da sala os rojões que costumo guardar para as vitórias do Juventus e correu rumo a eles, gritando "iupiiiiiiiii!" e saltitando feito adolescente.
-- Calma, criança, calma! -- pedi, abanando as mãos. -- Ainda é cedo para o foguetório.
Caminhei até a janela e fechei as cortinas. Quando me voltei para Alex, ele gemeu:
-- Estou que não me agüento de hemorróidas!
Este menino é do meu tipo! pensei. Depois assistimos a outro filme. A única coisa de que realmente me recordo sobre o filme é que todos acabaram transando com todos, menos um sujeito magricela com cara de pateta e óculos. Toda vez que ele era rejeitado Alex dizia, "Oh le pauvre." Ele estava realmente se identificando com o pateta.
Quando o filme terminou, ele se pôs de pé e exclamou:
-- Deixa comigo, que eu preparo o jantar!
Disse que iria fazer omelete com presunto cru de Wenckel. (Esse presunto cru é excelente, embora o espanhol seja o melhor.) Não fez o omelete, entretanto. Apenas fritou os ovos no método que chamou de "mole". Eu lhe disse que aquilo não era omelete, e ele respondeu resignado, suspirando: "Eu não cozinho muito bem." Então meus sentimentos por ele ficaram ainda mais ternos. Eu, em contrapartida, cozinho bem e me deixo emocionar facilmente por pessoas como Alex. Que lindinho!
Após o jantar prometi que o levaria ao cinema para ver um filme de Woody Allen se ele lavasse a louça.
Dito e feito. Saímos e rumamos para o Largo do Arouche. O Cine Bijou estava lotado (pra variar), então pegamos um táxi e fomos para o Cine Lido, em Diadema, onde assistimos Dama de Lotação, de Jabor.
Nós nos vimos pouco depois disso. Certa vez, almocei com ele numa das cafeterias de uma universidade chamada McKenny ou MacKinley, coisa assim. (Logicamente abaixo da crítica para um uspiniano com mais de 160 de QI feito eu.) Em nossa mesa havia um estudante de direito que esbravejava insolente contra a onda de violência na cidade, que o crime organizado assumira o controle, que os bandidos tinham de ser executados sumariamente, essas balelas que a pseudozelite dos países subdesenvolvidos proclamam, fechando cinicamente os olhos para a culpa deles próprios para com o subdesenvolvimento. Quando lhe perguntei: "Meu amigo, então por que você não se arma logo e sai por aí matando você mesmo os bandidos? Ou vai ficar aí fazendo onda, esperando que a polícia cometa os assassinatos por você?"
Bem, não é preciso ressaltar que com isso o sujeitinho calou o bico, pegou seus cadernos e livros e puxou o carro. (Um dos livros era Assim falou Zaratrusta, de Nietche, mas duvido que o carinha o lera. Muitos brasileiros se dizem leitores do pensador alemão, mas sequer sabem soletrar o nome dele.)
Enquanto isso, Alex choramingava do outro lado da mesa, lamuriando ser incapaz de aprender inglês. "Well," eu ri, "afinal não vai lhe fazer falta!"
Alex era mentalmente perturbado no sentido em que acreditava em superstições e não na lógica e na razão. Por exemplo, perguntou qual era o meu signo e quando respondi "Leão", ele deixou o queixo cair de espanto dizendo que não havia nenhuma chance de nos darmos bem, porque ele era peixe ou capricórnio ou touro ou jegue ou sei lá que raio de asneirol zodiacal.
Aleguei que aquilo, evidentemente, não fazia a menor diferença, que esse tipo de crença é apenas isso, crença, ao que ele exclamou, exaltado: "Não! Além do mais, sou ultradireita! Não há como me relacionar com um sujeito sem ideologia como você!"
Tentei ponderar que, se ele fosse uma velha e escorregasse na calçada num dia de chuva e alguém por perto risse, ele, ao invés de chorar, deveria pensar que, se esse alguém fosse uma formiga e ele tivesse caído encima desse alguém, então esse alguém não acharia a cena tão engraçada. Não é preciso acrescentar que Alex se acalmou prontamente ante insight tão instantâneo com a verdade nua e crua que eu acabara de lhe revelar.
Desde o começo ele decidiu que não poderíamos jamais formar um casal. Dou a isso o nome de autoderrotismo. Era um menino agradável e inteligente, apenas "travado" por algumas confusões bestas. Logo depois disso mudei de cidade, deixei de frequentar o Orkutus e assim nunca mais nos cruzamos.
A última vez que o vi foi no carnaval de 2007. Ele estava no lado direito da av. Paulista em meio à turba de foliões, atirando confeti pra todos os lados. Pensou ter me visto primeiro e fingiu rapidamente olhar uma vitrine do Bradesco, como se interessado em comprar uma calculadora, esperando que eu passasse sem vê-lo.
Eu o imitei, fingindo que não o tinha notado e continuei em frente, olhando para o outro lado...
Era surpreendente. Por ser um sujeito sempre disposto a impressionar meninos, dediquei alguns minutos a escrever um recado de que não estaria lá às 16:43 horas. Joguei fora uns dois ou três rascunhos antes de me decidir pela mensagem final. Quando arranquei a folha do bloco, ela rasgou irregularmente. Tirei minha tesoura e aparei até deixá-la retinha.
Uma das primeiras coisas que Alex me disse quando nos encontramos àquela tarde foi: "Sabe aquele recado que você me deixou?"
Fiz que sim com a cabeça, esperando algum comentário ácido ou mesmo acerbo.
"Pois é", ele completou, rindo. "Minha empregada jogou fora pensando que fosse lixo, e só me contou no dia seguinte! O que estava escrito?"
"Ora!", ri de volta, fazendo das tripas coração para ocultar minha surpresa. "Sabe que não me lembro! E se não lembro, então não tinha importância, não é mesmo?"
* * *
Bem, passados tantos anos, só tenho a lamentar que Alex optou por outro rumo que não este que resolutamente seguem meus velhos e calejados pés. A última vez que o vi foi num boteco na Vila Nova Conceição ao lado de uma gente estranha com pinta de ultrahiperdireitistas (nenhum descendente da House of York, alguns poucos habitando maisonnettes).
Do outro lado da calçada, chamei "Alex! Alex! Venha! Vamos escrever mais uns artiguinhos gracinha pro nosso blog!", mas uma dona de peruca verde se interpôs entre nós dois e fez uma figa em minha direção, seguida dum obsceno gesto de banana.
-- Agora estamos sorvendo nosso vinhozinho de todas as tardes, mon ami! -- ela vociferou, obrigando Alex a virar o rosto para o interior do boteco, como se quisesse protegê-lo maternalmente de más influências.
Era assim que achavam que iam derrubar a mula -- comunhando todas as noites em torno dum copo de vinho e jogando bravatas fora. Fazer o que, não é mesmo? Afinal, este é o Brasil, terra do pensamento mágico, terra em que até a direita acha que mudar as coisas dá muito trabalho. Etcha.