Mãozinha a futuros bacharelandos


Você sabe que, no futuro, professores de letras e estudiosos da linguística vão arregaçar as mangas e ─ se me permite um doce academismo ─ se "debruçar" sobre a efervescente transformação sofrida pelo processo comunicativo na era lulopetista. Por isso, para você aí que está contratando um redator profissional para lhe desenvolver uma tese e enfim botar as mãozinhas finas e lisas no tão sonhado canudo universitário que você não vê a hora de emoldurar e pregar na parede da sala, aí vai nossa humilde contribuição sobre aquele que foi um dos mais ricos períodos em figuras literárias e expressões pitorescas de toda nossa história.
Tomemos a retro-mencionada "era lulopetista", para começo de conversa. Essa expressão, embora aparentemente simples, é, como todos sabemos, eivada de pesada carga semiológica e certamente figurará entre os principais preceitos da ciência fundada pelo nosso amigo suíço Saussure.
Vamos ilustrá-la com uma breve historiazinha.
Tudo aconteceu assim:
O tempo é o futuro ─ sempre o futuro, não se esqueça.
Estamos na sala de ocorrências duma delegacia de bairro qualquer em Sampa. O delegado titular tem diante de si dois gatunos que acabaram de ser flagrados surrupiando a bolsa duma velhinha que fazia as compras da semana numa das deliciosas feiras de rua que soem operar na cidade.
Um pouco mais afastada da mesa do delegado está a vítima, que veio prestar queixa. É uma senhora de aparência frágil e cabelos brancos presos num coque esmeradamente esticado acima da nuca. Traja um surrado vestidinho de tafetá cinza-escuro que lhe empresta um ar humilde mas digno. A fragilidade da aparência não impede que ela sustente sobre os dois batedores de carteira um olhar feroz e firme de quem se sabe amparada pelo fraterno manto da justiça.
Ao lado da vítima estão três ou quatro donas-de-casa que presenciaram a cena criminosa e vieram oferecer seus testemunhos. Estão cientes de que cada cidadão brasileiro deve fazer-se presente quando o que está em jogo é a aplicação das leis.
O delegado titular está sentado à sua mesa, braços cruzados, alternando um olhar inquisidor e bem treinado de policial entre os dois meliantes.
─ Vocês confessam ou não que roubaram a bolsa desta senhora? ─ rosna ele, caprichando na carranca ameaçadora, procurando intimidar os vagabundos. ─ É melhor abrir logo o bico, estou avisando. Senão o pau come!
─ Eu confesso! ─ se entrega um dos larápios, temeroso de entrar no porrete. ─ Fui eu que arranquei a bolsa do ombro da velhinha.
─ Umpf! ─ o delegado grunhe satisfeito por já ter resolvido metade da parada. Então, voltando-se para o outro ladrão, ladra: ─ E você? Confessa ou não confessa que estava com a carteira da vítima no bolso detrás das calças?
O segundo gatuno coça o cocuruto e espreme os lábios em expressão de dúvida. Depois meneia a cabeça e arqueia as sobrancelhas, hesitante. Por fim olha para os lados como quem procura uma lorota convincente. Por fim de novo, gorjeia mavioso:
─ Bom, doutor, para dizer a verdade, não sei como a carteira foi parar dentro do meu bolso. O senhor sabe, nem tudo tem explicação nesta vida.
Todos voltam os olhos para o delinquente, incrédulos. Vê-se, pela expressão pasma de cada um dos presentes, que eles custam a crer que possa ter nascido neste mundo criatura com tamanha cara-de-pau.
A velhinha roubada não se contém – tomada de raiva, pula da cadeira num salto e se põe a esbravejar, contorcendo a cara como que afligida por estranho e fulminante mal-estar.
E então grasna:
- Seu safado! Nunca pensei que um dia fosse escutar patifaria tão... tão... A, se pudesse... pudesse...!
─ Calma, minha senhora. Calma! ─ o delegado é obrigado a intervir, receoso de que uma vítima de roubo sofra um derrame bem em seu plantão, lhe arrumando ainda mais sarna para se coçar.
Os peêmes que fizeram o flagrante também se sentem atingidos em seus brios de paladinos da lei e começam a coachar a um canto, indignados. O tenente, que comandou a patrulha responsável pela averiguação da ocorrência, se adianta na direção do delegado e chia:
─ Doutor, todos os feirantes e fregueses confirmaram o depoimento da vítima. Chegamos antes que os elementos pudiam se evadirem sem que tiveram logrado fuga.
Uma das senhoras presentes na qualidade de testemunhas também toma alento e cacareja:
─ Todos nós vimos, doutor! Aquele ali que confessou veio correndo, arrancou a bolsa da Claudete e passou a bolsa para esse outro ordinário aí.
─ Eu também vi! ─ bale ardida outra das donas-de-casa. ─ Vi direitinho quando o sem-vergonha tirou a carteira da bolsa e enfiou no bolso das calças.
O delegado se recosta na confortável cadeira de rodinhas estofada em curvim preto pregueado e, focando um olhar triunfante em cima do segundo malfeitor, muge:
─ E então, meu chapa? Como é que você sai dessa?
Antes que o interpelado tenha tempo de responder, o primeiro acusado ergue uma das mãos, pedindo licença.
E arrulha:
─ Eu posso explicar, doutor.
─ Pois então explique! ─ rala o delegado, segurando o queixo como se a cabeça lhe pesasse uma tonelada.
─ Bom... ─ começa a gemer o cleptomaníaco para logo se calar, titubeante.
─ Desembucha logo, antes que eu perca a paciência! ─ troa o delegado, cerrando os punhos, quase possesso.
─ Bom, doutor, o senhor sabe... ele era... era lulopetista!
Então escuta-se na sala de ocorrências daquela distante delegacia de bairro uma barulhada de uivos, urros, assobios e zunidos, formando estranha e desconexa algaravia. Todos trocam olhares confusos, miram impotentes o teto, sacodem desolados as cabeças. À medida que a agitação começa a amainar, arregalam olhões estupefatos e totalmente inermes na direção do segundo ladrão. Este se limita a devolver a todos um olhar nada mais que vazio.
Passados alguns segundos de suspense, o delegado, procurando se refazer do choque, estala secamente os dedos de ambas as mãos, atraindo a atenção dos demais.
E bufa:
─ Tudo bem, pessoal! Caso resolvido! Podem se retirar. Acabou. Acabou.
Dizendo isso, ele se levanta, apanha a carteira roubada que está sobre sua mesa, enfia a carteira na bolsa, caminha em passos cansados até dona Claudete e lhe estende a bolsa.
A vítima, com a mão sobre a boca como que procurando conter a indignação, apanha a bolsa e arrasta os pés rumo à porta. Atrás dela seguem as testemunhas, que também estão não apenas caladas, mas mudas.
Os gatunos se levantam devagarinho das respectivas cadeiras e, sem se atrever a encarar os demais, se esgueiram sala afora.
Quando se vêem na rua, correm serelepes até a primeira esquina e somem.