Ao contrário de Nelson Motta (e outros fracotes enfarados
e decadentes que já se cansaram do assunto mensalão), tenho o sr. Luiz Inácio Lula da
Silva na conta de fonte inesgotável de encafifamento. Alguns chegados meus
sugerem até que estou ficando meio obcecado pelo sujeito. Será? me espanto,
arregalando estes meus olhinhos que por sua vez também nunca se cansam de
piscar perplexos ante certas realidades desta vida.
Bem, tudo é possível. Sou de fato um indivíduo assaz
sensível. E melindroso. C’uma baita tendência a me abespinhar por quase nada. E
me indigno fácil, fácil com o que acho errado ou com malandros que tentam se
passar por santos. E gente assim é que não falta nesta vida. E neste país.
O sr. Luiz Inácio Lula da Silva me encafifa tanto, mas
tanto, que vira e mexe me surpreendo em devaneios a imaginar o que esse sujeito
faria se exercesse outra profissão. E como imaginar é comigo mesmo, vou dando,
como diziam os brasileiros de antanho, tratos à bola. (Fala a verdade – esta
nossa língua portuguesa é uma delícia ou não é?)
E se o Lula fosse, digamos, borracheiro?
Qual é que seria a primeira providência que ele tomaria,
em sua opinião?
Bidu.
A primeira providência do cara seria arrumar pregos.
Pregos, preguinhos, pregões. Pregos para todas as, com perdão da rima,
ocasiões.
Mas, pera lá, como assim, pregos para um borracheiro?
Seria o mesmo, ou quase, que um médico se munir de racumim para tratar a azia
de seus pacientes, não seria?
Fico aqui pensando, será que existem mesmo borracheiros
capazes de distribuir essas pecinhas pontiagudas pelas ruas das nossas cidades
para assim garantir uma freguesia cativa? Ou tudo não passa duma lenda, uma
lenda obviamente injusta para com esses tão úteis profissionais?
Bem, assim como você, não sei direito o que pensar a
respeito. Acho essa possibilidade meio brutal, quase que uma violação
antecipada do direito que os indivíduos têm de ser considerados inocentes até
prova em contrário. (Aliás, como querem os defensores dos mensaleiros
condenados até o presente, no que estou plenamente de acordo.) No mais das
vezes gosto de me considerar judicioso e procuro evitar pensar o pior dos
outros sem uma boa razão. Falar mal, menos ainda. Enquanto não se demonstrarem
seres endiabrados, os outros são, aos meus benévolos olhos, anjos. Nessa bola a
que vou dando tratos, só falta mesmo criarem asas e voarem.
Mas no que diz respeito ao Lula, não tenho dúvida nenhuma
não senhor.
Borracheiro fosse, a área circunvizinha à sua borracharia
bateria todos os recordes possíveis e imagináveis de pneus furados por
quarteirão. Filas, longas delas, filas longas a dobrar a esquina e
quem sabe a próxima se formariam de manhã à noite diante do portão da
Borracharia do Lula, onde o preço é mais barato, o serviço, mais bem feito e o
papo, mais ameno. E o negócio, naturalmente, iria, só para adicionarmos a este
exercício de especulação metafísica outra saborosa expressão popular, de vento
em popa.
E ai do infeliz que sonhasse em abrir outra borracharia
nas proximidades com o intuito de se aproveitar do grande movimento e auferir
algum. Não duvido que no dia seguinte o imprudente seria encontrado numa
estrada vicinal de Juquitiba com visíveis sinais de tortura no corpo e meia
dúzia de azeitonas na cabeça. (Tal trágico destino de tal infeliz tampouco me
espantaria. Afinal, espalhar pregos pelas redondezas para consolidar o próprio
negócio não é ideia que se possa patentear. Mas isso não significa que
qualquer sacana pudesse aparecer de repente no pedaço e ir agindo como se as
oportunidades fossem para todos. Como se, cáspite! vivêssemos num país
capitalista.)
Chegando neste ponto, porém, você, paciente leitor e você, ansiosa leitora, poderiam torcer o nariz pensando ter encontrado um incontornável furo nesta
nossa inocente historieta. Afinal, ter à sua espera uma multidão de motoristas ávidos por reparar um pneu (ou dois, quem
sabe mais) furado não seria exatamente
o maior anseio profissional do Lula. Muito pelo contrário. Significaria, cruz
credo, trabalho! E ninguém em sã consciência acreditaria na verossimilhança de
tal história.
Mas quem disse que o Lula botaria a mão na massa? Eu é que
não fui.
Pois quando o primeiro freguês, putaço da vida, babando de
raiva e vociferando os mais cabeludos palavrões por ter tido todos os quatro
pneus de seu automóvel perfurados (a esta altura, o laborioso Lula ainda não
teria se aliado à Goodyear e à Firestone para juntos inventarem um método de
estrepar também o estepe), adentrasse o salão da
borracharia, quem você acha que o recepcionaria?
O patrão é que não, naturalmente. Pois o patrão estaria
confortavelmente instalado num tamborete no balcão do boteco do Everaldo,
situado exatamente defronte sua movimentada borracharia. O patrão e seu
indefectível copo de 51, sempre engolfado numa só talagada. O patrão e sua
inesgotável verve poética para soltar pela profunda garganta o mais vasto
caudal de bobagens, aboborinhas e fanfarronices, suficientes para carregar mil
tonéis de aço a ser lançados ao espaço sideral para estudo por outras
civilizações que eventualmente encontrassem a preciosa carga orbitando um
planeta de longínqua galáxia. Um patrão sempre pronto e disposto a disparar as
mais grotescas cantadas às meninas e senhoras que cometessem a asneira de
passar pela calçada bem à sua frente. Um patrão sempre de olho na esposa do
Everaldo. Um patrão que teria ao seu lado Lulinha Jr., ainda frangote mas já se
preparando não para aprender e praticar o digno ofício de borracheiro e estudar
à noite para um dia ser alguém na vida, mas sim para seguir os passos tortos,
os passos desvirtuados do pai e em breve se tornar um ronaldinho na arte da
maracutaia. Um patrão... putz! chega de viajar. Acho que já deu para
entender. (E quem estaria de fato viajando, na maionese, seria o patrão, claro,
pois, como todo mundo sabe, nada mais apropriado para esse fim que subir a
bordo duma boa garrafa de 51 e esquecer que existe freio...)
Bem, não pense que a borracharia ficaria ao deus-dará
enquanto o nosso empreendedor-prodígio gastasse todo seu dia no balcão a usufruir
das benesses de sua vocação epicurista. Afinal, o sujeito é um pândego mas não
um tonto.
O negócio estaria sendo bem cuidado nas mãos habilidosas,
e ágeis, do grão-mestre dos artífices da borracheirisse — ninguém mais, ninguém menos
que o notório Zé Olho-de-Sapo, que atuaria nos bastidores, digo, no banheiro
dos fundos da borracharia como ajudante, assistente, assessor, auxiliar, secretário,
adjunto e ministro, digo, laranja do patrão. Zé Olho-de-Sapo seria também
encarregado de arregimentar uns meninos de rua para o trabalho sujo, qual
seja, zanzar para cima e para baixo pelas ruas vizinhas com pequenos
pacotes de pregos nos bolsos, esparramando o bagúio pelas guias como quem
semeia o pão-nosso de amanhã.
E por aí iria esse nosso imaginoso – mas não tão
mirabolante assim – conto de fodas.
E depois que a ideia da “profissão: borracheiro” nos
enchesse de insuportável enfado, poderíamos partir para outras.
Que é que vocês sugerem?
Um lula jornalista? Só se algum de vocês tiver muito, mas muito mais imaginação que eu – a minha não daria conta dessa aventura.
Um lula padeiro? Psicanalista? Padre?
Já sei! Um daqueles ascetas que fazem voto de silêncio
cedinho na vida e se dedicam à busca da verdade interior! Seria não só
profissão mas também um belo dum castigo para o miserável.
Não! Espera! Esta é boa. Presidente. Presidente da
República!
Sim! Vamos partir para o mais ambicioso exercício de
imaginação de todos os tempos. Lula presidente! Lula...
Ai. Que frio medonho acaba de me congelar o estômago.
Acho que agora minha historinha que a princípio parecia tão promissora e salutar furou mesmo. (Nada a ver com os pneus da desventurada
classe média brasileira.)
Lula presidente... Não, não me atrevo a tanto.
E não teria forças. Nem imaginação.
Precisaríamos da ajuda de alguns dos verdadeiros bambambãs
da literatura. Imaginar Lula presidente seria tarefa para um Gabriel García
Marques. Ou um João Guimarães Rosa. Ou – apelemos logo ao maioral – Machado! Ou
os três juntos...
Imaginar Lula presidente... Deus meu, que dantesca visão
nubla meus olhos. Meu coração aflito chegou a paralisar por intermináveis segundos.
Lula presidente.
Já imaginou?
Estou tentando. Mas sou incapaz.
Quem diria, um sujeito tão imaginativo feito eu...
Jesus, acho que acabei de arrumar um belo trauma para esta minha frágil cabecinha de vento.