O desejo de apartidarização dos
movimentos de rua é desonesto. Se quem está no governo e manda em tudo é o PT,
por que não dar nome aos bois? Ou aqueles a favor de despartidarizar o
movimento acham que o governo não tem responsabilidade no desmazelo econômico e
social que vivemos hoje?
O que aconteceu foi que as
manifestações contra os aumentos nas tarifas de transporte fugiram ao controle
de seus líderes iniciais. O movimento foi originado por partidecos
insignificantes como o PSTU, o PSOL e o PC do B, aliados a facções camicazes do
PT. Os gênios rebeldes não contavam com a astúcia da população. A saída que
enxergaram foi tirar seus partidos da reta, limpando a cena do crime, tentando
apagar das ruas as digitais sujas de corrupção da fauna esquerdista que sempre
vicejou em torno do Erário.
Só que era tarde.
Hoje, quando a onça vem enfim beber
sua água azeda, os espertalhões se movem de fininho para fora do campo de visão das
câmaras. Rui Falsão, presidente do PT, tentou entrar de gaiato na onda infiltrando
seus militantes nas manifestações. Ganhou o rechaço devido. A própria Dilma
Rousseff — depois de se esconder debaixo da cama do Alvorada por uma semana —
convocou rede nacional de rádio e tevê para expressar solidariedade à malta. Só
faltou se oferecer para liderar o movimento. Que cara de pau.
O maior problema da nossa presidenta,
além das óbvias faltas de competência, de honestidade e de vocação política, é que
ela não tem vergonha na cara.
A nova
Dilma. Cara de quem acabou de cair do cavalo. Da reeleição garantida às
acusações de incompetência e irresponsabilidade à angústia de se ver reduzida
ao que realmente é. Poucas coisas neste mundo me dão mais alegria que ver um
poderoso tomar um banho de realidade.
* * *
Quando Lula elegeu Dilma, fez-se a
esbórnia nos fóruns digitais. A empáfia lulopetista galgou os píncaros da
infâmia. Foram meses de deboche e piadas sob a analogia do poste introduzido no
rabo da oposição. Quando chegou a vez de Haddad, a turba de neandertais caiu em
estado delirante. Estava definitivamente provado que o chefe dos mensalleros,
em se tratando de eleger inaptos, tinha o toque de Midas. Podia ungir quem lhe
desse na telha. Deus se fazia presente na Terra. A mágica voluntarista varria o
país. Democracia, legitimidade ideológica, papel constitucional dos partidos, instituições,
tudo virou pormenor ante a deidade Lula.
E não apenas o novo Deus detinha o dom da unção arbitrária, como os ungidos automaticamente ganhavam a graça divina da sabedoria assim que recebiam a benção da posse. Lembram-se como
até ontem a gerentona rodava o mundo a dar lições gerenciais a pobres-coitados
incompetentes como Obama, Merkel, Sarkozy e companhia bela? Aos olhos dos
desvairados, o mundo se ajoelhava ante a encarnação da Vontade Suprema.
A propósito, por onde andará o
parlapatão mor da República, aquele ex-incendiário político hoje amigo do peito
dos eikes e cavendishes da vida? Dizem que Lula prossegue no circuito de
palestras empresariais, faturando até 200 mil reais por cada aula magna encima de magnatas e grandes
banqueiros. O ex-revoltado parece ter feito um pacto com aqueles que
antigamente eram o alvo de suas litanias: hoje ele se vinga das elites
proferindo arengas recheadas de metáforas futebolísticas e grosserias e as
elites, em processo de sublimação, se redimem pagando fortunas pelas aboborinhas embuchadas de vácuo
servidas pelo embusteiro.
Queria tanto saber o que o
gargantão-profunda pensa dessas manifestações. Onde andará a esta altura
da Copa das Confederações? Cara! Vem nos iluminar a todos com tuas pérolas de
sabedoria. Ensina teu povo — e teu poste — a encontrar um rumo nesta hora
ingrata!
* * *
Falando em gente escondida, agora dei
de escutar umas vozes estranhas. Vozes que até ontem viviam voltadas para o
umbigo de seus respectivos donos. De repente, eis que resolvem acordar para a
realidade. Se alteram. Se indignam. Umas até vociferam. São essas vozes que me
fazem duvidar da efetividade do atual movimento político. Receio que sejam as
vozes das marias que vão com as outras. Se exaltam quando outras vozes se
exaltam. Se calam quando outras vozes se calam.
É mister reconhecer, porém — as
classes médias não nasceram nem para o golpismo nem para a subversão. É o
que tenho escrito em meu blog desde 2006. Nós que guardamos a posição
intermediária na pirâmide social vivemos para trabalhar e por essa mesma razão
somos, ugh, desideolizados. Ou, se preferirem, professamos a ideologia da
individualidade. Temos horror ao ativismo. (Eu ao menos tenho.) A passividade é
não um defeito, mas nossa própria índole. Digo, a passividade política, pois economicamente somos ativistas avant la lettre. Não necessitamos de esmolas do governo. Muitos de nós as abominamos. Ser
merecedor de esmolas é não apenas humilhante, mas sobretudo contraproducente.
(Tudo bem que há entre nós muitos que ambicionam senão uma boquinha na
repartição pública mais próxima; outros sonham c’uma vaga de vereador na câmara
municipal de suas cidades, não para contribuir com o desenvolvimento político do país, mas simplesmente para entrar na festa dos que roubam verbas públicas. É gente que se diz crítica do governo enquanto está
do lado de cá do balcão, mudando de juízo assim que descolam a tão cobiçada sinecura.)
O que nos distingue de outros estratos sociais, acima de tudo, é que nós classes médias damos de barato que o Estado
está nas mãos de profissionais que são nossos prepostos, designados por nós para
se incumbir e desincumbir de tarefas que não temos tempo, paciência, vocação e/ou
aptidão para executar. Precisamos manter o foco profissional. Enquanto trabalhamos, vamos pagando os impostos que nos
cabem e elegendo os representantes que se nos apresentam, esperando que as
coisas funcionem como nos disseram que funcionariam. Exatamente aí reside nossa vulnerabilidade. Ter o trabalho e a
ascensão social como metas prioritárias nos deixa expostos a ataques de cima e de baixo. Precisamente por isso não podemos nos eximir do exercício da nossa ideologia individualista. (Vou me limitar a explicar que "individualista" aqui expressa meramente uma atitude econômica, não moral.) Viver para o trabalho e para a família resulta numa opção ideológica, queiramos
ou não. Nossa visão de mundo é a ética do trabalho de Weber. Nosso distanciamento do ativismo político não significa nem omissão nem que estamos disponíveis para servir de escravos sob as mãos finas e
bem-tratadas da elite econômica ou as patas da barbárie stalinista que jamais
se cansa de cobiçar nossas parcas posses com seus olhões arregalados de gula e suas patas ávidas pela rapinagem.
Chegamos muito perto do precipício com a possibilidade d'um José Dirceu atingir a Presidência da República. Sob Lula, nossa sorte foi que o sujeito cansou de brincar de rebelde e resolveu desfrutar das delícias duma vida epicurista entre seus novos amigos nababos.
* * *
Chegamos muito perto do precipício com a possibilidade d'um José Dirceu atingir a Presidência da República. Sob Lula, nossa sorte foi que o sujeito cansou de brincar de rebelde e resolveu desfrutar das delícias duma vida epicurista entre seus novos amigos nababos.
Cada um dos cidadãos que, GRAÇAS AO
PLANO REAL, ingressaram no mercado de consumo é um pequeno lula. O primeiro ato
importante do ex-metalúrgico ao virar presidente foi comprar um Boeing de 60
milhões de dólares. O primeiro pensamento do pequeno lula ao se tornar
consumidor é correr até a loja mais próxima das Casas Bahia para botar as mãos
num televisor de cristal líquido de 40 polegadas. A classe, ou aglomerado
social, que o PT se gaba de ter elevado economicamente não tem, nem quer saber
de, ideologia — estão a fim é de fazer parte da festa consumista. Eis o
grande, e insolúvel, contrassenso do partido que cresceu e chegou ao poder
apelando à conscientização politizada das relações sociais das massas. O que os
emancipados pelo PT buscam hoje é exatamente o alvo que Lula e seu bando de
hipócritas sempre procuraram destruir. Como os ideólogos petistas vão sair
dessa, nem o “filósofo” Slavoj Zizek sabe, nem a doidivanas professora de
filosofia Marilena Chauí imagina.
Seja como for, Lula, depois de
entrar para a elite econômica, ao menos fez algumas autocríticas com relação às
suas antigas posições políticas radicais (sempre tomando cuidado, naturalmente,
para não se revelar o cafajeste que é ao seu curralato). Todo
indivíduo deve ter o direito de mudar de opinião, claro. Mas Lula, para variar,
levou tal direito ao extremo, se declarando uma metamorfose ambulante numa
tentativa de renascer das cinzas perante seus adoradores de totens.
O mesmo não se aplica ao quadrilheiro
Zé Dirceu. Este nunca teve vergonha de se declarar escravo de sua ideologia.
Como todo bom stalinista, brande o lábaro da foice-e-martelo enquanto vai
forrando suas contas bancárias na Suíça. Ao contrário do novo cristão Lula, o
megaconsultor empresarial José Dirceu não se dá o trabalho de conter a baba de desprezo
que nutre pela classe média. Poderoso fosse, não hesitaria em enfileirar seus
inimigos diante dum paredón. Tivesse condições, nos enfiaria a todos os “burgueses”
num campo de extermínio. Em nome de quê? Em nome dum proletariado potencialmente revolucionário que só
existiu nas fantasias de Lênin.
