Predadores

Fico o tempo todo agoniado com a calamidade imposta pelo lulopetismo a este país e a esta gente que são, também, meus. Leio tudo que posso a respeito dessa nova doença letal que vai se alastrando por um sistema que já sofria de muitas outras, a maioria, graves. Recentemente li Lula e Mefistófeles, de Norman Gall, e Década perdida, de Marco Antonio Villa. Fora jornais e blogs. Qualquer hora me animo a falar um pouco dos livros.
Fico o tempo todo pensando que mais é possível falar do lulopetismo. Parece que tudo já foi dito, não é mesmo? E falamos, falamos, falamos e parece que nada acontece. O tumor continua a comer solto. Do jeito que vai indo, acabará por devorar todo o sistema antes que acordemos para sua letalidade. O sentimento geral é de impotência. Nossa democracia não dispõe dum remédio eficiente contra o cancro.
Os lulopetistas, uma vez instalados no poder, aprenderam, como nenhum outro grupo político antes, a usá-lo em benefício próprio, extraindo dele toda vantagem que puderam e ainda podem. Quanto mais se locupletam, mais o país padece. No auge da popularidade de Lula, em seu segundo mandato, o partido levava toda a pinta de que ocuparia o Palácio do Planalto por décadas a fio. As variáveis todas – políticas, econômicas e sociais – se conjuminavam no que parecia ser uma administração perfeita, tocada por um sujeito de raríssima sagacidade que sabia contemplar as necessidades dos pobres e os anseios dos ricos. Eis que atingíamos, enfim, o shangrilá do mundo avançado. E, paradoxalmente, o próprio episódio do mensalão – que à época, imaginávamos todos que não víamos a hora de o pesadelo acabar, sepultaria o lulopetismo no nascedouro – teve efeito exatamente contrário: serviu para consolidar ainda mais o domínio do partido sobre os demais e de quebra elevou o prestígio pessoal de Lula aos níveis de gênio da raça que todos conhecemos. Por muito pouco o chefão não foi submetido a um processo de impeachment (como todos sabem, nosso glorioso FHC teve papel decisivo em livrar a cara de seu maior adversário). O afamado Roberto Jefferson, responsável maior pela degola de José Dirceu, preferiu poupar o presidente. Assim, o metalúrgico do agreste renasceu revigorado das cinzas, cresceu em soberba, empáfia e arrogância e adquiriu ares divinos aos olhos de seus áulicos sempre ávidos por se transbordar de libertação catártica.
Se fosse minimamente sensato, Lula teria se mancado. Afinal, faltara este tantinho para que o Congresso instaurasse um processo de destituição do presidente da República. Qualquer outro em seu lugar teria criado vergonha na cara e trataria de se emendar, receando recair na vida pregressa. Se a regeneração presidencial tivesse ocorrido após o mensalão, tudo poderia ter sido mais fácil, não poderia? Talvez o PR tivesse aprendido que o único caminho viável é o da democracia e, nesse processo, se tornado, ou pelo menos tentado, o estadista que delirava ser desde os tempos dos portões das montadoras onde desenvolveu seu tino de encantador de auditórios. Mas esperar bom-senso dum primário desse naipe seria ingenuidade demais da conta, naturalmente. Lula é um caudilho, com o pathos dum caudilho, a personalidade dum caudilho.
Fico o tempo todo me lamentando: que imensa oportunidade ele e sua trupe deixaram escapar. Poderiam ter aplicado à perfeição o dito da faca e o queijo. Raras vezes teremos vivenciado tão fantástica combinação de poder político, bonança econômica, paz no campo e na cidade, esperança popular e boa-vontade da elite financeira. Basta refletirmos uns segundos sobre cada um dos presidentes anteriores – FHC, Itamar, Sarney, Collor, os militares – e veremos que nenhum deles pôde reunir condições tão propícias para implantar seu programa de governo. Que pena que os lulopetistas deixaram a chance lhes escorrer por entre os dedos ágeis. O que lhes faltava era exatamente o principal – o dito programa. E Lula poderia ter entrado para o lado digno e decente da história brasileira. Infelizmente optou por seguir sua índole.
Agir conforme as regras – e a Constituição que jurou respeitar – não estava nos planos do cacique do ABC. Ser o presidente mais “querido” do Brasil era demasiado pouco – o que demonstra patentemente que estamos diante duma ambição descomunal, talvez mesmo doentia. E um conceito como respeito, ao que quer que seja, soa derrisório aos ouvidos do megalômano. É para os bobos. Enquanto eles cultivam respeito uns aos outros e às regras, o espertalhaço vai comendo por fora. Se faz de joão-sem-braço e, quando se derem conta, terá todos aqui, na palma da mão, e aqui, dentro do bolso. A lógica do espertalhaço é cavar pênalti. Não pode simplesmente fazer o que deve ser feito. O espertalhaço precisa mostrar que é o craque dos craques, um gol honesto não o satisfaz, há de arrancar uivos apaixonados da plateia. Aquele famoso tento de Maradona contra os ingleses não foi chamado de “mano de Dios” à toa. Quebrar as regras é, mais que simples alternativa, imposição. O espetáculo está acima de tudo. Mais que apenas ganhar, o espertalhaço tem de humilhar. Enquanto esperamos um presidente que governe e administre, se dedicando à resolução dos profundíssimos problemas que foi eleito para resolver, temos um caudilho obcecado por cair nos braços do povão. A Presidência nunca lhe bastou – não podia se contentar em ser apenas mais um retrato em branco e preto na galeria dos ex-presidentes no andar térreo do Palácio. Quem sabe, depois de sua passagem por esta Terra, à qual deixaria um legado de riqueza, alegria e bem-aventurança, não lhe arranjariam um retrato que fosse pelo menos o dobro dos demais em tamanho?
Uma vez eleito, Lula levou o caminhão de som do antigo sindicato à Presidência da República. Viciado na adrenalina que a discurseira presumivelmente injeta no sangue para inebriar o cérebro, virou o mestre do discurso vazio de conteúdo e sentido mas carregado de emoção. Vem-se alimentando de devoção pública desde os tempos heroicos das greves em São Bernardo. Assim que trepa num palanque, se alheia da realidade terrena, cai num transe que hipnotiza os aduladores vindos de todas as classes sociais para cultuá-lo, engrena um palavrório arretado em que os problemas do mundo evaporam por encanto e, como já testemunharam Marilena Chauí, Antonio Cândido e Marta Suplicy, vira deus. O milagre se opera. Está em seu momento máximo. Sai a flutuar pela estratosfera num tapete mágico. Uau, deve ser arrebatador mesmo.
Quando se viu livre das implicações do mensalão, Lula provavelmente sentiu-se predestinado, acrescendo mais uma fantasia mórbida à sua já magnífica coleção de automitos. Nesse ponto deve ter dado adeus definitivo a qualquer resquício de sensatez que pudesse ter sobrado em sua personalidade. Sentiu-se incólume. Dera um olé consagrador nos bobos e suas normas democráticas. A ciência dos doutos e a disciplina dos ordeiros não eram páreo para sua catimba. FHC e todos seus diplomas inúteis e seus livros ilegíveis e aqueles intelecas e estudiosos com suas pias crenças no esforço e no trabalho, eles iam ver só uma coisa. A ginga lulopetista estava prevista não nos manuais do jogo republicano, mas no Código Penal.
Safando-se das garras da lei, mesmo que de raspão, Lula assistiu a seu poder, que já era enorme, crescer a níveis imensuráveis. E junto parece ter crescido sua alienação da realidade. Despojado do pouco que lhe sobrara de pudor, desandou a lançar bobagens em todas as direções, indiferente ao ridículo a que expunha o cargo de presidente. A cada discurso batia o próprio recorde de bravatas por minuto. Da prepotência verbal logo passou à ação destrambelhada. Se pôs a tirar postes da cartola, lançando-os a torto e direito para aniquilar de vez a já anêmica oposição e consolidar a dinastia petista. Haddad, e sobretudo Dilma, são amostras nada grátis do desastre que o despautério presidencial pode causar a um país.
Hoje, agosto de 2014, o lulopetismo é uma interminável sucessão de calamidades. A falta de planos administrativos, de objetivos gerenciais, de projetos econômicos, aliada à ambição desmedida do chefe e a voracidade de seus apaniguados por verbas e cargos, está desestruturando o pouco que havia de organizado e produtivo no estado brasileiro. Não duvido que o achaque que ora sofrem a Petrobras e a Eletrobrás seja apenas a ponta do iceberg cujos efeitos deletérios ainda sofreremos por décadas. Os lulopetistas são incansáveis em sua sanha predatória. Vão aprontando uma trapaça atrás da outra. É um pequeno golpe contra nossa democracia aqui, uma fraude financeira ali, outro engodo acolá.
Quantas vezes todas essas mazelas já foram denunciadas e repetidas, não é mesmo? Falamos, falamos, falamos e parece que nada acontece. E o tumor vai-se encorpando. Não demora e chega à metástase.
Às vezes a impotência me leva a temer que o número de democratas dispostos a enfrentar a doença não será suficiente para a tarefa. Às vezes tenho essa agônica impressão de que chovemos no molhado.  Há não muito tempo Demétrio Magnoli negou que o PT seja uma quadrilha. Tenho grande admiração por Magnoli – até estudamos na mesma época na USP, quando ele e seu bando apareciam todo santo dia pra interromper uma aula e convocar a moçada para um ato político qualquer pelas quebradas de Sampa –, mas daquela vez tiver de discordar. É quadrilha, sim senhor. E só não estão atrás das grades porque temos um sistema judiciário de araque.
À maioria de nós democratas não nos resta muita opção que a denúncia, não é? Não estou bem certo – ao contrário de certos blogueiros por aí, em geral tenho mais dúvidas que certezas – até que ponto exatamente o trabalho dos que denunciam delinquentes políticos tem ajudado os brasileiros a preservar o pouco de democracia que conquistamos até aqui, mas uma certeza pelo menos tenho: os denunciadores têm pelo menos atrapalhado o trabalho sujo dos totalitários do lulopetismo e assim ajudado a retardar a implantação dum regime castrista por estas tristes plagas. Até quando? Nem imagino.
Como sempre digo, meu leitorado é escasso. Escassíssimo, na verdade. A causa de tal escassez, imagino, talvez seja exatamente minha aversão a alinhamentos ideológicos. Querem alguns exemplos? Aqui vão: sou absolutamente anti-esquerdista & ao mesmo tempo ateu; tenho calafrios ante o intervencionismo estatal & ao mesmo tempo acho que o aborto, em quase todas as situações, é questão de foro íntimo da gestante (é assassinato? talvez; tanto quanto são as 2 mil mortes de civis causadas por Israel na mais recente retaliação contra o Hamas); abomino o cotismo por qualquer causa que seja, acredito na liberdade absoluta (inclusive a de ser ateu e de abortar), creio que o indivíduo tem total preponderância sobre o coletivo (a liberdade, lembra?), sou alérgico a qualquer tentativa de igualar indivíduos.
Neste momento, porém, ter essa ou aquela ideologia é secundário. O importante é todos os patriotas e democratas nos unirmos para que nosso país não se torne uma Venezuela amanhã.
Há pensadores, escritores, jornalistas e blogueiros de todas as cores tentando compreender o lulopetismo e aquilatar até que ponto a doença já avançou sobre o organismo. Ocupam todo o espectro ideológico, da direita à própria esquerda. Alguns ex-petistas chegam a ser os mais contundentes nas críticas aos descalabros perpetrados pela quadrilha. Uns enxergam um projeto bolivarianista, outros enfatizam a concupiscência. Particularmente, vejo o lulopetismo como uma massa de ex-esquerdistas radicais que hoje se entregaram à farra abjeta propiciada pelo poder desregrado. Muitos, sobretudo os ex-sindicalistas, se mostraram apenas delinquentes comuns em busca de posses e status, sugando o Erário sob o pretexto da eterna luta de classes. O próprio Lula já se confessou aideológico, o que está, hoje, mais que patente. O sujeito se alijou de todo verniz político para se assumir um nababo, rivalizando com os mais tristes tiranetes africanos que depauperam toda uma nação e abarrotam os cofres dum banco suíço qualquer.
Ideológico ou não, o PT usa o mesmo viés totalitário, estatizante e corrupto das ditaduras esquerdistas e persegue o mesmo fim: o aniquilamento das vozes dissidentes e a hegemonização do partido.
Por isso, os motivos dos lulopetistas são inconfessáveis. Nem Lula, nem Dilma, nem nenhum deles jamais lançou como plataforma eleitoral a censura à imprensa, o uso dos recursos estatais para fortalecimento do partido, a “extirpação” de partidos oposicionistas, a partidarização do Poder Judiciário, a aversão a críticas, a intolerância ao adversário. Só explicitaram seus objetivos escusos depois que chegaram ao poder.
O cancro vai minando o sistema silenciosamente e os sintomas só começam a aparecer quando já é tarde.