Estou parado diante da geladeira aberta pegando gelo pra minha kaipiroska de figo ao mais caricatural estilo de Hollywood, Soninha, na sala diante da tevê no último volume, berra que lume umpogamo pasmana dodameno.
Hã? retruco uco co.
Dumi umbogana basmedu dudumi!
Tiro meu controle do bolso da camisa, vou até a porta e teclo. A tevê emudece. (Não sei se já lhes disse, comprei um controle extra só pra essas ocasiões. E pra quando preciso atravessar a sala sem ter meu frágil mundo interior convertido num viaduto mineiro feito pra copa do mundo destroçado na avenida.)
Volto, prossigo na perscrutação contemplativa do interior da geladeira. Apanho a bandeja, me viro pra pia, abro a água.
Descolei um programa pras manhãs de domingo!
Sei.
Quer saber qual é?
Não.
Andar de bike na Paulista!
Vou até a porta de novo.
Vai pedalando daqui até lá?
Dã! O Altair vai me levar.
Nos últimos tempos Sô ressuscitou esses dãs medonhos, depois dum período de trégua. Coisa do face. Me dá arrepio no baixo cóccix. Aquele poeminha cuja remota sementinha começava hoje cedo a trincar na cruel luta pela sobrevivência para ganhar a estratosfera da consciência vai pro saco.
Quer ir coa gente?
Dã! devolvo. É tão mais fácil quando se adere à maioria. Que se danem as idiossincrasias de todas as gentes. Tem hora fico tão exausto tentando me manter incólume a esses seres que povoaram esta Terra.
Fica sentado numa daquelas mesas de rua enquanto a gente passeia. Vamo benzim, vai!
Armo a língua pra debochar da ideia mas um estalido padre-antoniano clica lá no fundim. Pombas, anos não vejo a cidade, a Paulista, a mansão dos Matarazzo que a Erun tentou tombar no primeiro dia em que pisou na prefeitura e os cabras dinamitaram metade do prédio pra se livrar do socialismo fajuto dos tralhas, os casarões da elite cafeeira do primeiro Getúlio, será que fizeram a tal ciclopista dentro do Trianon? O bravo prefeito haddad está recuperando a cidade para os ciclistas, o haddad está certo, bota esses molengas barrigudos pra suar, depois a dilma podia derrubar a Amazônia e plantar cana no lugar e botar os mentecaptos consumistas das classes médias na produção de etanol, menos aqueles coitados que só agora entraram no mercado, tomara que a marilena não me leia, é capaz de ter um superorgasmo ante minhas fantasias, credo, não saio do meu itinerário casa-buteco-buteco-casa, ando me sentindo meio escravizado por essa rotina, quem sabe relaxar um tico a rédea com que controlo a aleatoriedade das coisas não termine por me trazer alguma esperança? Vocês aí do outro lado sabem que ando meio desesperançado ultimamente. Para ser preciso, desde o dia em que nasci. (Será que a medicina inventará algum dia um bálsamo para a desesperança? Espero que não.) Cogito mesmo em pedir pro Altair levar uma magrela extra (será que ainda se usa “magrela”? a última em que andei era da mana, aquela mais velha que nunca mais vi mais gorda, tinha um pedal só, sem brincadeira, descemos para a praia no ônibus do seu Nestor, papai adorava me ver camelando na magrela manca, até que enfiei o dedão na corrente que ficou pendurado borbotando meu sangue aguado e o besta quase teve um enfarte, era foda arrancar um sentimentozinho de afeto do FDP), tento imaginar meus cento e quinze quilinhos massacrando meus bagos contra o selim, naqueles tempos varava o dia no pedal, pegava a Anchieta até as Colônias, aquela em que lula vai se enfarar de frango com polenta, Sô e seus pernões de potranca, me ocorre uma alternativa.
Cê me leva na garupa, benzim?
Larga essa mocreeeeeia! Excelentíssimo abestado! Fica sendo mandado por essa mulhé veia nojenta aí! Descola parasita!
Tenho um sobressalto alto to. Sô reativou o som. Volto até a porta. Tá passando uma propaganda com o Tiririca. Sô se escangalha de rir. Apalpo meu controle no bolso da camisa sopesando se devo o botar em ação mais uma vez.
Retorno. (Espero que vocês aí estejam atentos às minhas idas e vindas entre a porta que leva à sala e a pia. Mantenham a sobriedade, deixem a zonzeira por minha conta.) A torneira ficou aberta, o gelo derreteu quase todo, o gente irresponsável. Comecei a me esquecer de fechar a água depois que teve início a crise hídrica. Tomara que fique uns cinco anos sem chover, queria ver a cara dos mimados do governo, os bolsistas disso e daquilo, coiós que renunciaram ao dever de lutar pelo que é seu, choramingões que abrem o berreiro a cada contratempo, precisamos duma guerra, uma guerra de verdade, não “revoluções”, golpes, intentadas, uma “coisa” devastadora que irrigue as ruas e os campos de sangue e ensine a esses poltrões o valor da vida. Minha esperança era o Bush invadir e detonar esta bosta osta ta. Desisto da kaipiroska ka. Mando smirnoff até a metade no copo americano, engulo, sorvo o ar pela boca, ai meu são Nada. Topo qualquer parada por uma promenade na avenida.
O som da tevê torna a morrer. Um carro buzinando. Sô tem essa capacidade ornitológica de distinguir os sons e suas fontes. E seus significados.
O Al chegou!
Dou um golinho de despedida e saio para o jardim da frente. Lembram aquela placa que a Sô me mandou fincar perto do portão? Já esqueceram, não esqueceram? Tem hora me dá esse desânimo danado gastar teclado com esse meu público “leitor”. Tem hora me dá essa comichão quase irresistível de apagar este blog e ficar na minha com meus livrecos que venho urdindo alvejando o Nobel. O táxi do Al tem duas magrelas amarradas no teto. Atravesso o jardim, virando a cara pro outro lado da maldita placa, passo pelo portão, sento atrás, Sô, no banco do carona. Al olha de lado, na certa com receio de dar um beijo em Sô na minha frente. Ela se adianta e tasca um beijaço na boca do bocó.
Como vai a Luana, Al? sacaneio.
Bem, obrigado. O Al é o sujeito mais xucro que conheço. O Al é petista, coitado.
Finalmente tomamos o rumo da avenida ida dadá. Um ou outro ciclista pelo caminho, às vezes passamos por uma gostosinha gostosérrima empurrando a bike numa subida. Esqueço meus leitores ingratos, volto a ter esperança na humanidade. A densidade ciclística vai aumentando à medida que nos aproximamos do nosso destino, subindo a Teodoro, virando à direita na dr. Arnaldo, pegando debaixo do viaduto da Consolação. Vez ou outra um tonho ou tonha grogue de sono ergue o braço e desiste ao ver o taxímetro baixado. Então me lembro que um dos meus sonhos de criança era ser motorista de táxi. Vocês se lembram, tinha um vizinho taxista que à noite, depois de voltar do trabalho, passava em casa e me dava um relato pormenorizado de suas andanças por Sampa. Não vou declinar o nome, pois ainda está vivo, acho. Me maravilhava na época, hoje fico meio enojado quando lembro. Os caras perdem a noção quando se veem a menos de um metro de distância um do outro. O taxista vizinho cansou de comer todas depois de três, quatro anos, endireitou, arrumou uma dona sério. Paulo Francis uma vez escreveu num dos seus Diários da corte que alguém devia escrever sobre o taxista, escarnecendo de Camus e Antonioni, dariam uma boa “simbologia” por (atenção) viverem destinos alheios. Francis me ajudou pacas a não embarcar de sola no que João Cabral chamava de “inspiração metafísica” de Fernando Pessoa e outros também contribuíram, como Eliot e quejandos e, sobretudo, Gombrowicz. Depois de ler, e entender e aceitar, Gombro, como o chama Mirisola, é dureza fechar os olhos para a lírica desmedida de tantos poetas por aí. Cabral diz que o que interessa aos brasileiros em Pessoa é seu “excesso de subjetivismo”, ou seja, Cabral e Gombro estavam falando a mesma coisa sem se conhecerem, provavelmente. Mas, não temam, tudo isso é apenas um detalhe. A Tabacaria continua imbatível.
Saio de repente de dentro de mim, o esplendor. Sinto os olhos em festa. Quem já teve cócegas nas pupilas sabe do que falo. Um enxame de bucetas pedalantes infla e desinfla em volta do carro como nos desenhos animados. Por que será que mulher fica tão gostosa encima duma bicicleta? Vocês não vão me perdoar mas não posso evitar ficar imaginando o roçar de cada par de grandes lábios contra o vil promontório do selim. Uma bomba à base de sabonete de sândalo parece que explode em algum ponto acima do canteiro central. E se o haddad me desse aquele emprego de cheirador oficial de alvissareiras pedalantes bucetíferas em flor da nova capital mundial das planas ciclovias paulistanas? Poderia assumir meu posto na boca da 13 de maio ou, no lado oposto, na esquina da Bela Cintra, não importa, conheço a situação de penúria da prefeitura, nem exijo adicional de periculosidade.
O carro para.
Tá bom esse barzinho, benzim?
Centenas de mesinhas ocupadas por molecada ainda no útero de suas mamães. Evito que o nojo que tenho de jovens me estrague o dia.
Tem uma mesa desocupada na pontinha! Sô aponta.
Desço. Bato a porta. Sô berra alguma coisa. O táxi parte.
O eco das palavras que não discerni reverbera nas minhas orelhas. Rumo rumo rumo para a mesa, sento sento sento.
Ninguém virá me atender, dois garçons para mil mesas. Inda bem que trouxe meu cantil de vodka. Nem todos os ensinamentos de papai foram vãos, puta que pariu.