Zoológico

Umpf!
Os tucanos querem reassumir o poleiro. Natural - quem não gosta de defecar na cabeça dos que estão embaixo? Mas antes de falar do zoológico a que se refere o título, peço ao leitor licença para lhe transmitir algumas informações científicas sobre essa ave que há décadas ocupa cadeiras no nosso valoroso Congresso Animal e os governos de alguns chiqueiros da Federação.
As ditas informações científicas são as seguintes:
O tucano tem bico descomunal. E oco. (Isso está relativamente "na cara".)
Em geral, é alaranjado, amarelo e branco e suas pálpebras são azuis. (Vê-se que o bicho gosta de chamar atenção.)
Tem a garganta e o peito brancos, com o resto da plumagem preto e os pés cinza-azulados. (Às vezes dá a impressão de ter a garganta bem maior. Se na mitologia tínhamos o grifo, em nosso zoo temos o tucrafa, mescla de tucano e girafa.)
Tem voo curto e desajeitado, com ruído característico. (Isso também é patente. O tucanão voou por meros 8 anos e quer mais. E, no processo, fez os mais característicos ruídos que já escutei.)
Boceja quando está com sono e dorme com a cabeça voltada. (Para onde, ninguém sabe. E quando boceja, quem dorme somos nós - isso quando não provoca efeitos piores.)
Pousa em árvores altas. (Sério? Eu pensava que ele só pousava em cima do muro.)
É um animal inquieto, que vive em bandos e se move o tempo inteiro, grita, chia e pula de galho em galho. (Também é verdade. Quando mandava no viveiro, o chefão tucanense todo dia vinha cuma boutade para divertir os pintos. Pode ser que pule de galho em galho - certa vez até pôs ovo fora do ninho.)
É monogâmico territorialista. (Ou seja, é ave com pouca aptidão à vida política.)
A fêmea choca e o macho a alimenta. (Qual deles bota, não se sabe. Não se sabe sequer qual é um, qual é outro.)
É arborícola e basicamente frugívoro. Também se alimenta de insetos e filhotes de passarinhos. (Mas não dá pelota para as ratazanas e as baratas que saracoteiam no galinheiro.)
O tucano se locomove de modo tão desajeitado, que os que o observam de longe pensam estar vendo uma estranha mistura de avestruz com pinguim.
O tucano é uma espécie em franca extinção, pobre.
Em vista dessas características, só posso perguntar: por que afinal esses caras escolheram o tucano para representar o partido deles? No mínimo, deviam ser multados pelo Ibama.
Como estava dizendo, os tucanos querem reassumir o pau mais alto do galinheiro. Estão contristados desde que deixaram de desfilar reino adentro e mundo afora o garbo de suas penas. Mal veem a hora de reabrir o magnífico leque de seus rabos de pavão em 2018. Em sua maioria, essas formosas aves arrulham maviosas no entorno do lago Paranoá, sem saber direito que fazer da vida. Perambulam de avião de norte a sul, meio indóceis, perscrutando todas as direções, arranhando as garras nos problemas do País, gralhando as possíveis soluções (que não implantaram quando eram donas do galinheiro). Voam, voam, voam, mas não se decidem em que lado pousar.
Como a bicharada em polvorosa já manjou, os tucanos são bons de bico. Nesse quesito, o que mais se destaca é exatamente o tucanão-mor. De todos os bicudos, é ele quem ostenta o apêndice mais vistoso, mais imponente, mais lustro e mais variegado.
No concurso de vaidade que é a própria essência da vida tucana, há também o quesito donaire. Sim, esta é uma palavrinha besta, dura de falar, mais dura ainda de ouvir, mas que vem a calhar quando se trata da fina estirpe tucanense. Pois bem, no tal quesito donaire, quem você acha que ganha? Bidu! É também ele, o tucanão-mor. E no quesito garganteio? Adivinhou de novo.
Quando o bichão estende a espalhafatosa plumagem multicor, a bicharada se embevece toda, os olhinhos ofuscados piscando de assombro, a língua roxa de fome e sedenta de justiça espichando fora da boca. Ato contínuo, vendo a plateia toda hipnotizada por seu charme ímpar, o bichão desanda a chilrear suas pitorescas figuras de linguagem e achincalhes sutis e ferinos. Aí, então, é covardia – a tucanagem cai, como seria de esperar, em estertores de alvoroço. Uns, de tanta comichão histriônica, chegam a esquecer a própria linhagem e se põem a cantar de galo. Outros até posam de gavião, grasnando sensatices, emplumando retumbantes promessas de que, agora sim, vão alçar aquele tremendo voo prometido ao público na venda do ingresso do zoo, com a garantia extra de que enfim botariam ordem no terreiro.
Quem vê de longe – pois, naturalmente, nenhum dos outros bichos tem coragem de se aproximar desses seres de seleta cepa –, exclama, putz, agora vai! Mas, pobres tucanos. No que batem as frondosas asas, mostram que não passam de galinhas. Sua poltronice, porém, não os amofina. Volta e meia cacarejam ameaças, assumem ares - no sentido figurado, claro - de aves de rapina, rangem os dentes que não têm, estrebucham. Sem nunca perder o penacho. Só tem um probleminha. Por um bom tempo a rutilante plumagem que eles tanto se esforçam por exibir não pôde ser vista na escuridão que se abateu sobre o reino lá pelo fim do reinado do tucanão-mor. Como assim, escuridão? você certamente perguntará. Pois é. Em seu afã exibicionista, os tucanos, passados longuérrimos oito anos que não acabavam mais, ficaram fazendo pose e se esqueceram de trabalhar. Resultado: deixaram a bicharada sem energia elétrica. Para as vacas que, como seria de esperar, pastam cabisbaixas acima e abaixo por estas desoladas paragens, a luz passou a custar os olhos bovinos da cara. Até hoje algumas atravessam suas atormentadas noites em torno de velas e lamparinas. Mesmo assim, andam mugindo que vão votar de novo na praga, digo, nos tucanos. Pobre pecuária nacional.
Logo haverá nova arrevoada para escolha do novo rei dos animais (isso se o atual rei dos animais deixar, o que não está bem certo até o presente momento). Parece que o antigo manda-chuva empenado está em vias de se aposentar (mas não desaparecerá duma vez por todas do matagal - continuará resolvendo os problemas do reino a partir de sua coluna no Estadão). Por isso, o partido das galinhas vem aí com outro espécime postular o cargo de dono da passarinhada. Sim, trata-se de outro grão-tucano. O da vez é um tico mais low-profile. Não ostenta o penacho do anterior (na verdade, é despenachado), não chilreia mavioso como o outro e seu bico não é tão oco e vistoso (pelo menos ainda não pediu que esqueçamos tudo que ele grasnou). Vem que vem, querendo cantar de galo lá das Alterosas, herdeiro - veja só quão estranha é a vida animal - duma das raposas mais astutas do zoológico nacional, mas parece que ainda não desenvolveu plumagem bastante para liderar a tucanada comme il faut. Ainda não se sabe se será o ungido. (O atual bananão, digo, bacanão do zoo, dono da fêmea de tapir entronada na Sede do Zoológico, vem deitando e rolando, pintando e bordando, afogando o ganso no rabo da macacada, mandando as vacas pros brejos e outras pitorescas expressões mais, e até o presente momento o despenachado só piou, em vez de cacarejar alto e bom som. Tem hora, até parecem amigos de infância. Ô despenachado, vai ser low profile assim lá na Argentina, pô.)
Isso posto, cabe perguntar: para que, afinal, as galhardas aves aspiram a retomar o poder?
Você aí, pintinho molhado, destituído, esfrangalhado, só olhando sem dizer nada, saberia responder? Afinal, por que é que você não bota o bico no mundo, seu mudinho? Por acaso alguém te amordaçou? Vai continuar aí parado, em estado de enfeite, levando sua vidinha insignificante sem eira nem beira, coçando o cocuruto sem saber direito por que, franzindo essa carinha de palerma, enquanto o galinheiro pega fogo? Seja esperto uma vez na vida, porcariazinha da natureza. Pare de assistir o jornacional como se fora um tira-gosto para a novela da Glória Perez e tome tino do que andam fazendo com seu país, bestinha.
Será que a melhor a solução é deixar que o zoo continue nas mãos das traíras? (Você certamente irá contra-argumentar que traíra não tem mão. Pois contra-argumente. Mas posso lhe assegurar que tem, sim. E mãos bem ligeirinhas, se é que me faço entender. Algumas com apenas quatro dedos que parecem valer por vinte.)
Talvez não seja tão ruim assim. Afinal, elas, as traíras, vem dando ração grátis ao rebanho há quase 13 anos, não é mesmo? Querer mais pra quê? Trabalhar cansa e você quer é sacudir. Se bobear, é até capaz de soltar a franga.
Essas traíras são tão boazinhas. Pelo menos é o que jura todas as noites o simpático casalzinho do retrorreferido jornacional, se esmerando em micagens extasiadas para assegurar ao rebanho que as traíras estão finalmente removendo as vacas dos malfadados brejos.
Dependendo do ponto de vista, pode até ser. Mas aonde as traíras vão mandar as vacas, ninguém faz a mínima ideia. O que se sabe é que as traíras são as mestras da metamorfose. Antes de se apossarem do aquário, não passavam de guarus na lagoa barrenta. Em sua maioria, constituídos de sindicalistas, socialistas, idealistas, maoístas ou simplesmente vagabundistas. Depois que se tornaram tubarões, viraram todos bon-vivants. Levam a vidinha boiando de papo pro ar na piscina aquecida, com direito a bóingue, cuecas cheias de verdinhas, canais de tevê para os filhotes, balcão de lagostas e camarões das mais variadas espécies no supermercado do Congresso, etecétera, etecétera e mais etecétera.
(Quanto ao tubarãozão-mor, esse continua com nome de fruto do mar, mas quem come é ele, e não vice-versa. E abocanha como ninguém. Eita carinha mais esfomeado, seu.)
E agora o guaru é você. Sou eu. Somos nós. Os que não temos direito a ingresso na inesgotável fonte estatal de águas turvas abastecida pelos esgotos dos palácios. Os nobres da corte do reino animal vão ficando mais e mais atrevidos e cínicos, engordando à obesidade mórbida com a montanha de grana que depositam sabe-se lá em quantas contas em aquários fiscais, criando cabides de emprego para as piranhas suas mães, filhas e tias e as novas trairinhas que brotam de tudo que é lado de tudo que é jeito. Enquanto isso, nós aqui fora do aquário, atolados nesta poça pútrida em que o oxigênio é cada dia mais rarefeito, seguimos sendo os patéticos guaruzinhos de sempre servindo de almoço para tucanos, traíras, tubarões, piranhas e ratos.
Bem, o retrato (ou "natureza morta" seria mais apropriado?) esboçado acima está longe de ser completo. A nossa fauna certamente é a mais rica do planeta. São muitas as espécies animais que não citamos. Faltou incluir, por exemplo, as raposas, os abutres, os vermes e as toupeiras. Mas acho que é tarefa além dos meus parcos dotes de escriba. Um dia haverá de nascer um Orwell brasileiro que retrate em papel, ou na internet, a nossa Revolução dos bichos. Chico Buarque bem que tentou, mas nos últimos tempos tem demonstrado que está mais para traíra que para retratista da calamidade zoológica nacional.
De qualquer forma, não carece ser gênio para descrever a bicharada. E, pensando bem, nossa fauna nem é tão variada assim. No fundo, são todos morcegos hematófagos jantando neste imenso banco de sangue tropical. Nosso sangue.
Não sei por que, de repente me bateu um profundo desânimo. A causa deve ser a ânsia de vômito que certos assuntos provocam em meu organismo. Ou então é apenas esta minha anemia crônica.