Não dá pra ler



A princípio pensei em ilustrar este textículo co’a careta travessa de Grande Otelo no papel de Macunaíma, mas logo mudei de ideia. MacNaíma foi, de acordo com seu criador, um herói, embora não tão heroico quanto gostaríamos. E não há nada de heroísmo no assunto de que vou falar aqui.
Há coisa de 25, 30 anos, a Folha de São Paulo era um jornal anódino, juntando notícias num amontoado informe que não cheirava nem fedia. O que salvava a face do periódico eram alguns de seus colaboradores, entre os quais brilhava Paulo Francis, que sozinho valia meu trabalho de andar meio quarteirão até a banca do Souza a cada três dias. O Drummond também colaborava uma vez por semana, embora insosso e raramente legível. Tinha também o diretor de teatro Flávio Rangel, cuja virtude, pelo que me lembro, era não dar com o martelo invariavelmente na ferradura tal qual todos os demais.
Nos tempos de Francis nós leitores mais exigentes às vezes até esquecíamos que a FSP sempre foi um jornal sem personalidade.
Então Francis se mandou pro Estadão, Drummond e Rangel morreram e a Folha escalou o jornalista Matinas Suzuki para dar um revamp na pasmaceira. O japa foi fundo. Reformatou os cadernos temáticos e remodelou o jeitão do jornal para que ficasse mais palatável às glândulas salivares da molecada, público sempre caçado a foice pelos vendedores de bugigangas. Por fim Suzuki botou o espertalhaço Washington Olivetto pra completar o serviço. De repente o novo bordão do jornal virou praga nacional sob uma campanha publicitária que hoje só perderia para a das Casas Bahia. A FSP logo tirou o Estadão da pole position entre os jornais mais lidos do país e pisou fundo para se tornar o que é hoje. Pelo menos no que diz respeito à sua edição online que, imagino, deva ter linha editorial similar à da impressa.
O que é hoje a FSP afinal? É um jornal que deixou de ser apenas anódino para se tornar equilibradamente anódino.
Segundo consta a edição online abriga nada menos que 150 colunistas. Dá até falta de ar, não é mesmo? Tem teclado para todos os gostos e sabores. Enumerá-los, uns poucos que fosse, seria entediante. Vocês aí fora provavelmente os conhecem. Os ditos cobrem – ou imagino que devam cobrir, não perdi meu tempo os lendo – todo o espectro ideológico. Ultimamente incluem até Guilherme Boulos, usurpador profissional de propriedade alheia que nunca se cansa de dar uma banana para o Judiciário e que em qualquer país civilizado estaria em cana há tempos. E não podemos deixar de fora o rei da bestiologia José Simão. Simão é o bobo da corte que veio a calhar à FSP. Especialista em piadinhas “não me comprometa”, faz o tipo galhofeiro. Que graça tem afinal quem ri de tudo e debocha de todos indistintamente?
Os principais articulistas – que cobrem a política e a economia – suam a camisa pra soar equidistantes. Obviamente acompanhando a vocação do jornal para o encimadomurismo. Parece cada dia mais difícil identificar uma posição concreta e unívoca nos textos de cada um que compõe a patota, excetuando um ou outro como o excelente Alexandre Schwartsman, que não olha por sobre o ombro antes de dizer o que pensa. Até Eliane Cantanhêde vem descendo a serra com o freio de mão puxado. A maioria dos “analistas” é simplesmente ilegível. E a anemia opinativa só piorou com a chegada das eleições. Visto que o PT é pródigo em gerar notícias não apenas desfavoráveis para o próprio partido mas francamente estarrecedoras para quem tenha vergonha na cara, ficou virtualmente impossível desviar o olhar para o outro lado e sair assobiando Vai passar, do Chico. (Eh Chicão, me dá uma gana de te dizer umas verdades quando me lembro da tua indignação seletiva...) A saída dos colunistas a serviço do jornal mas não do jornalismo para salvar as aparências impostas pelos novos tempos de equanimidade fajuta é ter o cuidado de pinçar um demérito qualquer que lhes possa soar factível contra a oposição. Então parece que tudo se aclareia. Os distintos estão lá para contrabalançar, não para dizer o que pensam. Buscam o empate. Ou seja, no que lhes tange, o PT e a oposição são absolutamente iguais e merecem tratamento igual. Vinicius Torres Freire, que até outro dia eu costumava ler depois de ter esgotado as demais opções, resolveu abdicar da capacidade crítica para se limitar a calculista de prós e contras. Se tornou um pisador de ovos. O leitor termina a leitura sem poder concluir coisa alguma, senão que o articulista precisará de muito mais talento literário se quiser se mostrar um bom enrolão. A continuar na névoa conceitual em que passou a perambular, pode dar-se por perdido no naufrágio jornalístico. Até mesmo – quem poderia imaginar? – Demétrio Magnoli, outrora inclemente com os crimes lulopetistas, ocasionalmente persegue mais a acomodação que os fatos. Está preocupado em criar metonímias e esmerilar frases de efeito, não em manifestar opinião. E não poderíamos encerrar este parágrafo sem render nossa costumeira homenagem ao colaborador-símbolo do jornalismo água-com-açúcar friasano, o eternamente inócuo Fernando Rodrigues.
Esses cabras, naturalmente, estão apenas refletindo a “linha editorial” estipulada pelo dono. As próprias notícias veiculadas parecem obedecer ao princípio do equilíbrio. Uma bordoada no PT, outra nos tucanos. Uma cutucada em FH, outra em Lula. Uma enfiada de dedo no olho de Dilma, outra no de Aécio. (Aliás, haverá notícia mais inconvincente que essa história do aeroporto em propriedade da família do candidato? É o jornal não perdendo a oportunidade de se autopromover com mais um furo – no caso, n’água.)
Até aí, nada contra. Capitalismo tem dessas coisas, pra desgosto dos pseudossocialistas brasílicos para quem um jornal deve ser antes de tudo isento. Só se for em seus mais doces delírios. Jornal é propriedade privada e se comporta como der na veneta de seu proprietário. O leitor é soberano na decisão de ler ou deixar de ler. Não é disso que estou falando. A questão aqui é que a FSP ultrapassou a prática jornalística tradicional para atingir o extremo da “isenção ativa”, uma que resulta não da imparcialidade e da neutralidade mas da equiparação arbitrária entre os diferentes.
E sabe o que é o pior de tudo?
O pior de tudo é que o Estadão está indo pelo mesmo mau caminho.
Quem achava que o politicamente correto seria inofensivo, agora que se vire com a nova “verdade dual” inventada pelo Frias. E a Folha, antes sem personalidade, hoje virou um jornal sem caráter.