Um dia no Planalto

Nota introdutória:

O texto a seguir foi escrito no final do último ano do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. Como todos que não têm memória seletiva se lembram bem, em seu segundo mandato FHC acabou por perder boa parte das glórias que havia conquistado no primeiro. O país paga até hoje – e haverá de pagar por mais sabe-se lá quanto tempo – pelo contrassenso do instituto da reeleição. Foi uma extravagância – para sermos suaves como o próprio ex-presidente. Uma extravagância ditada pela enorme vaidade daquele que poderia ter saído para a história como o grande herói que domou o dragão hiperinflacionário. Lamentavelmente – e brasileiramente – o campeão teve de meter o pesão na jaca. Como muitos previram então, a reeleição viraria uma praga de que o Brasil não se livraria nem tão cedo nem tão facilmente. Como todos que ascendem à Presidência da República, FHC não resistiu às tentações do poder quase absoluto de que desfruta o chefe do Executivo neste país. Como se pouco fosse ainda, FHC sonegou pleno apoio ao então candidato à Presidência pelo seu partido. Em detrimento de José Serra, lavou as mãos durante a campanha e assim, na prática, favoreceu a candidatura de Lula. Dizem alguns que FHC contava com um fracasso estrondoso do barbudinho na Presidência e então ele, FHC, poderia retornar tranquilamente ao Palácio do Planalto, quiçá nos braços do povo. Mais ou menos uma reedição da Síndrome de Jânio.

Well, deu no que deu. Já entrando em 2015, cá estamos às voltas com o partido mais corrupto e incompetente do mundo ocidental encastelado no palácio, com raízes solidamente entranhadas em todas as instâncias da administração federal. Teremos força para defenestrar essa doença chamada PT em 2018? Como dizem, a conferir. Torçamos para que Aécio Neves e seu bando de belas-adormecidas finalmente despertem de seus sonhos encantados e arregacem as mangas.


Quanto a FHC, bem, recostem-se e leiam. Antes, preparem a cerva e o saquinho de batatinhas, que a história é meio longa...





Um dia no Planalto

(Um dia nada diferente no Planalto ou... tem cura não)

Transcrito por Wilson Vaccari
Prezada leitora, antes de entrar no assunto propriamente escrito, quero relatar algo acontecido algures há anos no Planalto Central.
Estamos na final da Copa do Mundo de 1998. O Brasil, pra variar, parado (afinal, é a festa máxima do esporte nacional). Dois a zero pr’os franceses (que, dizem, são mulherengos e não tomam banho tão assiduamente quanto nós). Cada brasileiro em cada plaga do impávido colosso está de olhos hipnoticamente grudados na televisão. Súbito, em Brasília, em algum lugar – mais especificamente, no Palácio da Alvorada – espetaculares urros de incontida, desmedida, desinibida comoção quebram o angustiado silêncio que tomou conta da nação verde-amarela:
Vive la France! Vive la France!
É o terceiro gol gaulês, enterrando definitivamente nossas esperanças.
–Vive Zidane! Vive Montesquieu! – prosseguem os sorbônicos berros.
Trata-se, como já deve estar claro para a fanática leitora, da comemoração da vitória gaulesa sobre o valoroso mas zagalino e naiquiniano escrete canarinho. E a voz que comemora, embargada de comoção, está mais exaltada que as demais.
É voz de timbre meio acadêmico, enjoadinha e maneirista, que a gente não sabe se fala para dentro ou para fora, dicção um tanto falha que às vezes nos dá a impressão de que nossos ouvidos estão enganados, de que não podemos acreditar no que escutamos. A nós perdedores só nos resta ficar assombrados, cada vez mais assombrados com o dono daquela eloquente porém xenófila – e põe xenófila nisso – voz.
Ainda antes de entrar no assunto, cumpre-me assinalar o seguinte, quase surda leitora:
1) Este material é altamente secreto. Divulgação proibida. Transgressores estarão sujeitos a nova reeleição ad nauseum.
2) As expressões pitorescas que a leitora encontrará neste texto são genuínas. Semelhança com diz-que-diz-ques veiculados pela mídia será coincidência, mera coincidência.
3) O texto a seguir é transcrição dum despacho típico do presidente da República num dos raríssimos dias em que ele pôde ser encontrado em seu gabinete em Brasília. Esta transcrição não existiria não fosse o desvelo duma das secretárias do homem. Certo dia, a moça, que por motivos óbvios não quis identificar-se, magicamente surrupiou uma das fitas de vídeo em que fora registrado um dos despachos. A dita alega tê-lo feito só para curtir com sobrinhos e netos (e para guardar de recordação... hum...). Seja como for, o país ficará grato, muito grato a essa castanhíssima funcionária pública, cujo desassombro permitirá a nós brasileiros vislumbrar o autêntico perfil do nosso mandatário mor.
4) Anexo alguns detalhes sobre a sala de despachos presidencial. Logo à direita de quem entra encontra-se um saco de organdi pendurado num gancho à parede. É um saco enorme, estufado pelo conteúdo que infelizmente não se deixa mostrar a olhares curiosos. Ao longo ou ao cabo da transcrição talvez descubramos o que contém o gordo saco. Passado o saco, dá-se com uma ampla, bem ampla, amplíssima sala ornada por uma miríade de espelhos, inúmeros espelhos, espelhos de todos os tamanhos, espelhos de todas as cores e espelhos de todos os gostos, que nos primeiros instantes embaralham a vista do visitante. São espelhos mil ornando paredes, armários, teto e até a mesa de reuniões. Apesar de sua profusão, os espelhos não causam tantos reflexos quanto seria de esperar, pois que se acham todos voltados para a parte anterior da sala onde provavelmente posta-se o presidente. Passada a ofuscação dos espelhos, percebem-se três câmaras de vídeo, sendo uma instalada em cada parede lateral e a terceira no teto, todas igualmente voltadas para o posto do presidente. A seguir enxerga-se uma mesa semi-ovalada semirrodeada por uma dezena de cadeiras e encabeçada pela poltrona do homem. 
Antes de começar, porém, o transcritor relatará um fato acontecido há uns 65 anos, que não tem nada a ver com a transcrição propriamente dita, mas que cumpre relatar mesmo assim.
* * *

É cedo, bem cedinho numa certa manhã dum dia qualquer lá pelos idos de 1938. A família de Dinho está reunida para o desjejum quando o menino tasca na bucha:
— Não quero mais escola pública! Quero privada! Quero! Quero! Quero!
O pai general, generalíssimo, pouco dado a manifestações espontâneas de quem quer que seja, lança um olhar ao mesmo tempo divertido, irritado, sonhador, arrependido, desconcertado e prestes-a-explodir para o guri. Depois projeta outro olhar para a mãe. Em seguida estende mais outro olhar para a empregada. Por fim fita novamente o guri e ralha:
— Deixe de nhenhenhém. Eu aqui preocupado com o Getúlio, com o Hitler, com o Stálin, e você me vem com essa!
— Isso mesmo! – ajunta a mãe, que nunca fala sem antes esperar para ver a reação do general. – Você sabe de cor e salteado que não admitimos nenhenhém nesta casa. Onde já se viu! Será que pari um vagabundo? – Sem erguer a cabeça, ela vira os olhos para o teto e com a mão direita aberta desfere violentamente seguidas palmadas na própria testa. – O meu Deus. Será meu filho um fracassomaníaco? – Ela agarra alguns tufos de cabelos com as duas mãos e puxa como que tentando arrancá-los à força. – Senhor! Não permita que isso aconteça comigo. – Ainda segurando os cabelos, arremessa a cabeça contra a mesa, abrindo um corte na testa, que começa a sangrar.
— Você se preocupa em demasia, papai –Dinho admoesta, sem dar bola para a explosão emocional de sua moderada, equilibrada progenitora e pousando reconfortadora, galhardamente uma das mãos no braço do general. – Minha intuição me diz que esses homens que você citou serão os maiores benfeitores da humanidade. As coisas sempre se ajeitam. Espere só para ver. Basta não fazer nada.
Num gesto de supremo desespero, a mãe empunha uma faca de pão e corta um dos pulsos. O sangue espirra sobre a mesa, encharcando as torradas, formando uma poça escarlate na xícara de leite e manchando a toalha de renda branca. Alguns respingos atingem o rosto de Dinho. O garoto simplesmente os limpa c’um guardanapo.
— Puxa. Ainda bem que tenho você. – O irreformável general fita o filho e seus olhos se marejam. – Sim, você tem razão. Essas escolas do Estado não valem nada.
— Bye-bye, então – despede-se o moleque, que já era craque em idiomas, vários idiomas. – Até à noite. A empresa pública está fadada ao ostracismo da história. Vamos todos para a privada.
A mãe cai desmaiada e o general levanta-se para ir ao quartel.

* * *

No dia seguinte Dinho aparece com outra novidade.
— Pai, quero um cachorrinho. Todos têm um, menos eu.
O oliveiríssimo pai nunca deixa seu filho passar vontades. Assim, ambos põem-se a caminho dum desses petshops de fino trato que tem por aí.
— Queremos um cachorrinho, um fofo cachorrinho – ordena o general ao atendente da loja
O rapaz, vendo tratar-se dum bacana e seu filhinho mimado, esfrega as mãos, satisfeito. Fazia algumas semanas que não entrava viv’alma em seu petshop. A crise, para variar, andava braba.
— Pois não, meu senhor. – Ele se apruma e começa mostrar os melhores cães de raça à disposição em seu canil. – Estou certo de que um dos nossos campeões será do seu agrado.
Dizendo assim, ele passa servilmente a mão na cabeça do menino. Este, ao contrário da maioria das crianças, que em geral são avessas a afagos de estranhos, deixa-se prazerosamente alisar.
O vendedor dirige-se ao general, apontando os cães de que dispõe:
— Temos este pastor alemão que sabe deitar, rolar, sentar, saltar e nadar. Temos também este collie, cão de companhia, não uiva, não solta pelos, é sobejamente treinado na condução de rebanhos de gado e de ovelhas. (Nota do transcritor: seria supérfluo acrescentar que o general sentiu ligeira queda por esse aí.) Este irish water spaniel é fabuloso para caça em pântanos, se é que o senhor me entende... (Nota do transcritor: acho que o general não entendeu, mas prossigamos.)
O rapaz vai descrevendo os animais um a um e suas qualidades mais importantes. A todos Dinho faz que não, desinteressado. Até que avista um cãozinho sem raça definida esquecido a um canto, aparentemente destituído de grandes atributos.
— E aquele ali? – pergunta, entusiasmado.
— Ah! Aquele é um traste. Só fica para lá e para cá o dia inteiro, sem fazer nada.
— É esse que eu quero, papai! – Dinho prontamente encanta-se com o vira-lata.

* * *

Certa noite, Dinho acorda suado e ansioso. Sonhara que viajava pelo mundo, ficando três anos em cada cidade. Oniricamente, imaginara ter longevidade de 250 anos, suficiente para conhecer virtualmente cada cidade do planeta. É uma comichão incontrolável, pensa, decidindo que nunca mais resistiria a suas vontades, não importa quão extravagantes fossem. Dito e feito. Levanta-se imediatamente da cama, apronta-se, deixa um bilhete no armário da cozinha dizendo que estaria fora por algumas semanas e parte.
Esquecido da vida, entrega-se de corpo e alma à vocação de vagamundo que seria sua marca pelo resto da vida. Durante semanas percorre várias regiões do país, perambulando por rodovias, ferrovias e hidrovias. Ah! Quem me dera, pensa romanticamente, zarpar num barco pelos oceanos e velejar até o fim dos dias ao sabor dos ventos.
A determinada altura de sua excursão, porém, Dinho lembra-se que ainda precisa terminar a faculdade para se aposentar logo e volta para seus afazeres cotidianos. Ao chegar em casa depara com um aglomerado de gente diante do portão. Entra na sala e todos vêm correndo aos berros para ele. A mãe o aperta nos braços como se o tivesse salvado dum desastre aéreo.
— Dinho! Dinho! Ó meu filho. Onde você estava?
— Ora. Eu estava viajando. Vocês não leram o bilhete que escrevi e deixei no armário?
— Sim, Dinho. Lemos.
— Por que tanto queixume, lamúria e choradeira então?
— É que nós lemos... mas esquecemos.

* * *

Dinho estava em dúvida. (Uma das poucas dúvidas que jamais o afligiram.) Naquele dia saíra para passear mais uma vez com seu puro-sangue vira-lata que não sabia fazer nada (ao qual dera o nome primeiro de Malandrinho, depois mudando para Mavioso e por fim decidindo-se por Matelassé – cada qual repleto de intricados significados ocultos). Antes de começar seus habituais passeios com Matelassé, Dinho mandara confeccionar uma valise de executivo para o bichinho, pensando que assim estariam prevenidos para eventuais situações em que precisassem guardar alguma coisa. E assim preparados para o que desse e viesse, dono e cãozinho de estimação saíram para mais um giro pelas suaves avenidas congestionadas da cidade.
A tarde corria magnífica, plena de convidativas perspectivas perambulatórias, quando Dinho e Matelassé avistaram na calçada uma carteira que acabara de cair do bolso da calça dum desavisado brasileiro que seguia à frente. Ambos trocaram um olhar significativo e Matelassé, que não sabia fazer nada e ao qual Dinho nunca ensinara nenhum truque, saiu feito um tiro em direção à carteira. Com uma feroz expressão escrutinadora no focinho, examinou as redondezas para ver se ninguém estava olhando, abocanhou a carteira e a levou para seu dono.
— Good boy. Good boy –Dinho elogiou como bom imitador hollywoodiano que era, afagando repetidamente a cabeça do cão em sinal de recompensa. Matelassé, que não fazia nada, tendo assim descoberto como agradar o dono, desembestou a abanar freneticamente o rabo, fixando um olhar esgazeado e obscenamente bajulador em Dinho. Disfarçadamente, assobiando a Marselhesa, o rapaz apanhou a carteira e a enfiou na maletinha de executivo pendurada do pescoço do canino animal. Enquanto isso, o distraído cidadão que a deixara cair seguia inocente seu caminho, sem saber que jamais tornaria a ver seu dinheiro de volta.
Dinho tomou o rumo de casa, mal se contendo de excitação. Que sorte, pensava. Botar a mão numa bufunfa dessas, sem mais nem menos, caída do céu, o mais imerecido dos presentes. Chegando em casa, despejou o conteúdo da carteira sobre a mesa e viu que de fato era uma grana preta, muitíssimo preta. Matelassé, mesmo sem nunca fazer nada e não saber o que era dinheiro, esbugalhou os olhos e ficou ali parado, mirando a dinheirama e babando. E aqui voltamos à cruel dúvida que assoberbava a pobre alma do nosso Dinho: para que banco daria de mão beijada aquele farto numerário, Citibank ou HSBC? Banco do Brasil nem pensar. O que é patrício não presta. (Como todos veriam depois, este seria um dos grandes lemas da era Dinho.) O dilema era tamanho, que lhe dava água na boca (por incrível que isso fosse e talvez sugestionado pela baba do cachorro). Puxa, a quem devo adular mais?, torturava-se. Um banco é americano, o outro, inglês. Os ianques são os chefões, e é sempre bom ter um creditozinho com eles, mas os ingleses, em contrapartida, têm essa maravilha da natureza que é a monarquia, a rainha, os súditos...
E assim, sentado no sofá da sala, mirando-se no enorme espelho que tomava toda a parede, Dinho entregou-se a um doce, dulcíssimo estado de dúvida contemplativa e autoindulgente, ao mesmo tempo penoso, sentimental, clássico e genealógico. As horas passavam, os carros passavam na rua indo sabe-se lá aonde, os aviões passavam lá no céu voando sabe-se lá para que distantes terras além mar, só sua dúvida não passava. McDonalds? Chá das cinco? Tio Sam ou rainha de vitorianas eras? Big Ben, Wall Street. Inglês do Texas, britânico de Oxford. Oh dúvida. Oh dúvida. E durante todo esse tempo Matelassé deitado aos seus pés, olhar meio moribundo, melecando o carpete da mais fina baba.
De repente, a luz (que naquela época ainda existia à farta).
— Como não pensei nisso antes, Matelassé? – perguntou ao cachorro como se este de fato soubesse alguma coisa. – É claro. Vamos tirar cara-ou-coroa.
Ato contínuo, apanhou uma das moedas que estava na carteira, prensou-a entre o dedo indicador e o polegar e com um piparote lançou-a no ar. Estranha, muito estranhamente, a moeda, em vez de cair de volta para sua mão, ficou lá em cima, mais ou menos parada no ar. Por alguns segundos Dinho foi tomado duma gasosa sensação termo-angelical e ficou ali absorto de queixo caído, olhando a moeda meio que imóvel perto do teto, para em seguida exortar o cão:
— Corra, Matelassé! Vá latir na rua para que a vizinhança venha testemunhar este aunthentique, authentiquissime milagre.
E assim foi. Em pouco minutos a entrada da casa estava atopetada de gente querendo ver a moeda meio parada no ar.
— Não está meio parada, não. Está parada inteira! – aplaudiam uns, mais simpáticos a Dinho.
— Coisa nenhuma! – vociferavam outros, desconfiados de que se tratava dum truque. – Está caindo. E, se não estiver, é porque aí tem coisa.
Bem, e os que pensavam que dessa história sairia alguma coisa de proveito, enganaram-se. O povaréu ficou ali na rua, discutindo se a moeda estava estável, não estava estável, os anos se passaram e enquanto isso todos se esqueceram de trabalhar e ficaram pobres. Quanto a Matelassé, o cão que não fazia nada, hoje deve estar em algum canto por aí, talvez ocupando algum cargo de ministro da economia.

* * *

Alguns dias depois, a caminho da faculdade de Sociologia (que muitos anos depois mostrar-se-ia a) inútil, b) supérflua e c) preterível, pois tudo o que ali se aprendia, se lia e se escrevia era depois esquecido, provando que a) intelectual não serve para coisa nenhuma e b) tudo que escreve só dá certo no papel), bem, a caminho da faculdade de Sociologia, Dinho tropeça, pisa e passa por cima de 18 mendigos na rua, sem enxergá-los. Para numa banca de frutas na esquina para matar a sede.
— Severino, me dê uma água de coco, por favor! – pede ao repugnante, monoglota, provinciano pau-de-arara postado ao lado da banca, com um pé na cozinha.
Severino apanha um grande coco baiano e corta o ar com um longo facão de mato num golpe exímio que arranca o topo da fruta, abrindo um orifício para introduzir nele um canudinho.
— Óh hi! – exclama numa das raríssimas línguas que o guri desconhece, rindo desdentado e oferecendo o coco a Dinho.
— Mas não tem importado? – torce o nariz o garoto. – Eu só gosto de importado.
— Tem, sim, menino. Mas é oito vezes mais caro.
— E eu estou lá preocupado com dinheiro? E quanto mais caro, melhor! – esnoba o fedelho. – By the way, quanto você paga de impostos, Severino?
O nordestino olha para ele sem entender, mas pressentindo algo de lúgubre, muito lúgubre no brilho do olhar de peixe morto do menino. E pensa: “não sei por que, mas acho que vou entrar numa fria.”
Sim, brasileiro. Você está destinado a entrar numa geladérrima fria. No dia seguinte, nem bem abre a banca, Severino é visitado, admoestado e interpelado por um homem pachorramente gordo, com uma pança deste tamanho, cheia de pizza e cerveja, e com cara de quem sabe tirar, tirar e tirar, tirar para todo o sempre, tirar de tudo quanto é jeito, de tudo quanto é lado, tirar... Bem, tirar a mais não poder. O balofo rombiforme engravatado apresenta-se como auditor da Receita Federal.
— Bom dia. Vim receber o imposto.
— Pode pegar aí. – Severino dá de ombros e com o queixo indica os cocos. Surpreendentemente, não está surpreso. Espantosamente, não está... bem... espantado. Como todo bom brasileiro, não sabe o que é imposto nem por que deve pagá-lo, mas, no fundo, no fundinho da alma é um devedor, devedor nato, devedor atávico, deve, deve e deve, os impostos são a essência de sua vida, vive para recolhê-los, não importa como, mas, sim. Hei de recolhê-los custe o que custar. Não. Nada mais me resta, mas pagarei esses impostos mesmo com meu sangue. E se não pagar – como de fato não pagarei, pois sou um duro de pai e mãe. Ficarei conformado no meu alegre papel de devedor eterno.
Bem, enquanto Severino entrega-se a esse infindável, delirante transe fiscal, como a entoar um insano réquiem a um ser divino a cujos demoníacos encantos está sujeito todo brasileiro que se acha acima das mazelas da miséria, pensando-se um cidadão comum dum país normal, mas que, cuidado. você aí que se acha a salvo de tais ataques maníaco-depressivos, você também é brasileiro. Olho vivo. Tem muita gente por aí que se achava lúcida, incólume aos males que acometem o Brasil... bem, enquanto tudo isso, o bem-nutrido, inflado arrecadador acena para um caminhão da Repartição (sacrossanta Repartição), que está estacionado do outro lado da rua. O caminhão encosta defronte a banca e dele celeremente desce uma grande, enorme, numerosa e profissional equipe de carregadores. Em dois minutos tudo some dentro da caçamba: os cocos, a banca e o facão. Severino fica apenas com um coco na mão e a placa apoiada a um poste anunciando que ali se vendem cocos.
— Amanhã passo de novo para apanhar o resto – despede-se o rinocerontíssimo cobrador.
Severino observa a tudo sem nada entender.
— Parabéns! – alguém exclama atrás dele. É o nosso glorioso Dinho. – Agora você está em dia com o governo. Puxa, não é bom quando pagamos o que devemos? Que sensação de dever cumprido, que...
Bem, o empolado e irrefrangível janotinha discursa por vinte minutos, alinhavando uma a uma as vantagens da cidadania, fazendo pose diante dum Severino que apenas o fita, olhar tão vazio quanto seu bolso.
Antes de se despedir Dinho ainda diz, apontado a placa encostada no poste:
— Oxente, Severino. Coco tem acento não.

* * *

Isto posto, passemos finalmente à transcrição do despacho presidencial:

Um típico despacho presidencial numa típica manhã de Brasília

P.: (Tapando discretamente a boca com os dedos da mão direita e dizendo a si mesmo.) Ai que sono, sô! (Olha o relógio.) Pô, dez e meia da matina. Isso é horário de caboclo tomar o rumo da roça, sô! Que mania essa gente tem de madrugar. (Sendo um dos maiores canastraços de sua geração, troca rapidamente a careta de sono por uma máscara de líder pós-messiânico. Lança um olhar demorado e significativo para cada membro de sua equipe reunida em torno da enorme mesa redonda na sala, como se tivessem importância especial para ele.) Guten Tag. Buon giorno. Bon jour de congé. (Dá um último e discretíssimo bocejo. Fita a quinta secretária, que é a mais distante à sua esquerda, demora uns segundos o olhar sobre a moça e então começa a encarar os outros, um a um, como que aguardando algo, como sempre um olhar carregado de significados, os mais expressivos significados. Não se ouve um suspiro, uma manga de paletó farfalhando. São todos estátua. O presidente, mudo, ainda trocando estranhamente o olhar dum para outro, vai fechando a cara e enrugando os lábios. Seu rosto torna-se taciturno... começa a ficar sombrio. De repente o segundo assessor põe-se de pé num salto, unindo as mãos à frente do peito num gesto de contrição. Instantaneamente, todos os presentes, exceto o presidente, levam a mão à boca e encolhem os ombros, sobressaltados.)
Primeiro assessor: – Oh. Desculpe-me, senhor! (Dirige-se a um dos armários nos fundos da sala, dando um risinho nervoso e cochichando.) É... que ainda não me habituei. (Abre o armário e retira três estranhos, estranhíssimos objetos: um cetro dourado encimado de pedrinhas brilhantes, um manto monárquico azul-turquesa com passamanarias douradas e uma coroa que, vista pela fita de vídeo, parece ornamentada de pedras preciosas.)
P.: (O rosto presidencial transforma-se, os olhos iluminam-se, as sobrancelhas sobem quase até o couro cabeludo, a boca abre-se num esgar de alegria. Nem parece a mesma pessoa. Todos os demais esboçam um sorriso, soltando um suspiro de alívio. O primeiro assessor sai apressado em direção ao presidente, que se levanta. Aparentemente em estado de êxtase, ele aguarda enquanto o assessor lhe cobre com o manto, colocando-lhe o cetro numa das mãos e instalando-lhe a coroa na cachola king-size. Com ares de capricho enfim satisfeito, dirige-se aos assessores.) – Bem, que c'est que c'est nossa agenda para hoje?
Quinto assessor: – Senhor presidente, eu... 
Impõe-se um silêncio repentino e todas as cabeças voltam-se para o quinto assessor. O ar de desagrado toma novamente conta do rosto presidencial. A atmosfera fica prenha duma expectativa angustiante, como a que certamente precederá o fim do mundo. O quinto assessor, certo de ter cometido a mais vexaminosa das gafes, olha atordoado de soslaio para seus pares, suplicando ajuda. O presidente está furibundo mas não faz nada. A sala parece uma panela de pressão em vias de explodir. Mais um segundo e... e... sabe-se lá o que pode acontecer.. Nisso o quarto assessor, dominado pelo nervosismo, cochicha bem baixinho ao ouvido do colega.
Quarto assessor: – Majestade...
Quinto assessor: – Hein?
Quarto assessor: – Trate-o de majestade ou alteza.
O lívido quinto assessor encara sua majestade sem saber o que falar nem onde pôr as mãos. A primeira secretária apressa-se a intervir para que a coisa não desande de vez.
Primeira secretária: – Com licença, majestade! (“A primeira secretária, por ser a secretária sênior, sempre foi saliente, a bandida!”, pensa a terceira secretária.) 
Nota do transcritor: aviso que não sou daqueles transcritores que vão miraculosamente entrando no cérebro de todos os personagens e revelando o que pensam à leitora. Não. Sei que a terceira secretária pensou isso da primeira porque ela me contou mais tarde. Fica, pois, estabelecida, daqui por diante, esta simples porém revolucionária regra literária.) 
Primeira secretária – Com licença, majestade! (Repete a primeira secretária. Note a leitora que, durante a fala da secretária, o presidente mira um a um os inúmeros espelhos à sua volta, cada vez dando uma ajeitada na gravata ou na coroa. Quando olha para uma das câmaras, ele acrescenta um sorrisinho ao mise en scène.) – O Bush ligou ontem à noite e encomendou três dúzias de caixas de LCG para sua adega na Casa Branca.
Quinto assessor: (pensa “Que porra de LCG é essa?”, mas não se atreve a perguntar).
Quarto assessor: (Vendo que o quinto assessor está doido para perguntar ao presidente que raio de LCG é aquele, cochicha ao ouvido do outro antes que o desgraçado acabe mesmo fazendo a pergunta.) – É um acrônimo.
Quinto assessor: (Cochichando de volta.) – Acrônimo? E faz mal pra pele?
Quarto assessor: Uma sigla, sua besta! LCG é sigla de “Little Country Girl”.
Quinto assessor: (Tampando a boca, espantado, e logo destampando, mas ainda espantado.) – Nossa! O presidente norte-americano é pederasta?
Primeira secretária – Posso providenciar, Alteza?
P.: (Olhando o espelho do teto, esticando a pala do manto monárquico e pensando, pô, preciso mudar de alfaiate. Tem uma preguinha sobrando aqui. Olha para a primeira secretária.) – All right, all right. Mas fala pra ele maneirar nos drinks, vai acabar detonando o mundo de vez. Hehehe. (Todos, é claro, caem na gargalhada. O presidente olha significativamente para cada um dos presentes, agradecendo a receptividade às suas piadinhas – ele as faz às dezenas em todos os despachos daquele tipo. Por fim, fita novamente o espelho do teto e mais uma vez se regozija consigo mesmo, pensando, “pô, sou um baita presidente, mas ainda tenho as mesmas necessidades do homem do povo. Nossa. Só eu para ser tão complexamente simples. Pô, assim eu não me aguento.” Olha de novo para a primeira secretária, apagando o riso do rosto como que dizendo “chega de brincadeira”) – Não, não fala isso não, senão quem dança é o bonzão aqui. Hehehe. (E a turma cai novamente na gargalhada, é claro. O presidente deixa que todos riam desbragadamente, pois assim ele pode aproveitar para prosseguir com a interminável autoconferência narcísica pelos inúmeros espelhos e reiniciar a bateria de poses para as câmeras.) – Ah, e pergunta quando é que ele vai me levar para um giro no Air Force One.
Quinto assessor – Hehehe. 
O quinto assessor, aquele que não sabia o que era LCG, cai na gargalhada, o rosto ruborizado pelo esforço de conter-se, mas é instantaneamente repreendido pelos olhares fulminantes de todos os presentes: essa não foi uma piada, seu cretino. O presidente não tolera a tremenda injustiça de só o Bush ter um Air Bus daquele tamanho e ele, não. Vê-se que o estado de espírito do presidente sobe e desce mais que gangorra de parque infantil na hora do recreio. Quanto ao quinto assessor, é relativamente novo na turma – ainda não sabe discernir as finas sutilezas presidenciais. Ele abre o caderno de esportes do jornal que tem à sua frente e levanta acima da cabeça para esconder o rosto. O presidente aproveita para dar uma espiada no jornal e ver o que anda dizendo a imprensa ultimamente.
Primeira secretária: – Ah, alteza. O Bush também disse que não quer mais cachaça de cana de açúcar, que cana é negócio do Fidel e que americano nenhum vai tomar bebida comunista. Ou passamos a destilar a cachaça a partir do trigo – importado dos Estados Unidos, naturalmente – ou nada feito. Ele já mandou redigir um contrato de dez bilhões de dólares anuais por trinta anos de venda de trigo para o Brasil. O contrato é esse aí à sua frente, majestade. É só assinar onde está marcado com um xis.
P.: (Põe-se a resmungar meio para si mesmo, meio para os demais, enquanto apanha mecanicamente a caneta-tinteiro de ouro e assina o papelório.) – Pô, o Jorge dabliú não pensa em outra coisa. Parece obcecado por bebida. Esse pau d'água ainda vai fazer muita besteira na Casa Branca. (Percebendo que elevara algo demasiadamente a voz, o presidente limpa um pigarro da garganta para disfarçar.)
Segunda secretária: – Majestade. Majestade! (A segunda secretária tenta chamar a atenção do homem, mas não consegue falar alto o suficiente e não é escutada.) – Alteza! Alteza. (Nada! O presidente parece estar alheio a tudo e a todos, mirando um espelho portátil que tirara do bolso do paletó.) – Majestade! Majestade. (Ele mais uma vez não escuta e ela desiste. “Aquela bandida me paga!”, pensa a segunda secretária, dando-se por vencida e crispando os punhos por baixo da mesa.Cochicha.) – Só a primeira secretária quer falar! Ainda esgano essa cadela.
Primeiro assessor – Majestade! (O primeiro assessor faz parte da elite do funcionalismo, é filho dum mandachuva do Itamaraty e vive no métier desde o berço, manjando como ninguém as técnicas comportamentais que há que desenvolver e implantar em reuniões críticas de alto nível com presidentes da República, embaixadores, ministros e graúdos em geral. Por isso, ao pronunciar “Majestade!”, empresta à voz um sofisticadíssimo timbre nobiliário que é imediatamente identificado e reconhecido, seja explícita ou subconscientemente, por todos os presentes, que obedecem à subliminar mensagem de autoridade e nobreza imprimida naquelas duas dignérrimas palavras e instantaneamente se calam. Quando o primeiro assessor fala – ou melhor, fala não, expressa-se – todos atiçam os ouvidos e abrem o coração, pois cada peça discursiva sua é uma aula de dicção, impostação de voz, sintaxe e semântica.) – Um assunto momentoso impõe-se neste momento, majestade, o qual merece de sua sapientíssima parte especial atenção, consideração e devoção, que sua estima em rima sublima e legitima, pois embute em si, ao fim e ao longo, ao cabo e ao rabo, sérias implicações tanto para os envolvidos quanto para os não desenvolvidos, quer direta ou indiretamente, e quanto à qual não hei de sentir-me pejoso em explicitar neste solene ato, que Nosso Senhor Jesus Cristo haverá de abençoar ad aeternum en bunden vostren, que sua excelência George W. Bush, presidente dos magníficos e esplendorosos Estados Unidos da América, em oclusiva mensagem telefônica transmitida até nós via satélite, cruzando os ares deste nosso desassustado planeta, ontem à noite, expressou ser seu lídimo, obsequioso, pré-edipiano desejo de que o Brasil duplique, triplique, multiplique por mil a importação de batata, mandioca e cacau dos pauperizados produtores agrícolas norte-americanos, em soma tal que perfaça um contrato de cinco bilhões de dólares anuais em prol daquele grande, fraterno, setentrional país que, acima tudo, tudo o que faz, fá-lo para o bem e o encanto do nosso Brasil. O contrato ao qual me refiro acha-se à sua portentosíssima, puritaníssima, cabotiníssima frente, majestade!
P.: Fica olhando absorto o primeiro assessor. Passa-se um minuto. Passa-se outro minuto. Continua olhando, hipnotizado. A mulíssima locução do primeiro assessor já terminara fazia tempo. De repente meneia vividamente a cabeça ao dar-se conta de que todos aguardam que os sintomas passem. Pensa: “Deixa eu assinar logo este troço, antes que esse cara queira me explicar tudo de novo. Sei lá o que esse sujeito quer dizer, pô.” Apanha mecanicamente a dourada caneta-tinteiro que tantas benesses traz para o Brasil, estufa o peito naquele elegante estilo Victor Mature e aplica o jamegão no papel.
Inesperadamente, o telefone toca.
(Nota do transcritor: pois é, telefone toca inesperadamente até no gabinete presidencial. Ainda não inventaram telefone que toque de outro jeito. Bem, exceto quando alguém liga antes e diz, olha, vou te ligar de novo daqui a pouco. Aí não tem nada de inesperado.)
Segundo assessor: (Deixa o aparelho tocar cinco vezes) (Outra nota do transcritor: sim, é um número cabalístico que todo funcionário público que mama nas tetas da República – o que é um pleonasmo, claro – observa antes de atender o telefone. Não sei por que aqueles que tiram vantagens que sabem imerecidas na vida são supersticiosos.) (Endireita o espinhaço e fixa um olhar cúmplice no presidente enquanto apanha teatralmente o fone. Faz voz anasalada, impessoal.) – Gabinete de Despachos da Presidência da República. Norberto Onofre Anastácio Paranhos a seu dispor. (Escuta por alguns instantes. Todos olham expectantes para ele, as respirações meio presas. O segundo assessor continua encarando obedientemente o presidente.) – Hum... hum... hum... sei... entendo... hum... Só um instante, por favor. (Pressiona a tecla Mute no aparelho.) Majestade, tem um homem aqui que se diz... hum... bem... ahn... desentedi... defenestra... descompensa... desempregado...
P.: – Desenga – o quê?
Segundo assessor: – Desempregado, majestade.
P.: (Voltando-se para a primeira secretária.) – O que é um desenfreado, dona Catarina?
Primeira secretária: (Lança um olhar inquiridor para todos à mesa e todos lhe devolvem o mesmo olhar interrogativo.) – Bem, alteza... acho que um descasca... desentala... desempregado é... hum... deve ser... alguém que não tem emprego. (Ela assume um ar satisfeito.) Sim. Deve ser isso.
P.: (Franze o cenho, pensativo. Fica compenetrado por vários, variíssimos segundos.) – Interessante. Alguém que não tem emprego. Isso significa, por contraposição, que existe também o empregado. Que, por sua vez, sua honorabilíssima vez, deve significar alguém que tem um emprego. Mas é claro! (Com inexprimível cara de papudo, olha triunfal e paralisantemente para cada um dos presentes, aguardando que todos lhe retribuam com um olhar de orgástica bajulação.) – Mas espera aí. (Franze novamente a testa, cobrindo a boca com a mão direita, novamente pensativo, fitando o espelho.) – Por que será que alguém precisaria dum emprego? (Dirige-se à terceira secretária, apontando um enorme livro na mesa.) – Veja aí no dicionário como se diz essa palavra em inglês.
Terceira secretária: (Com certo custo, abre um gigantesco livrão com capa de couro sobre a mesa e consulta.) – É “unemployed”, alteza. Ou “jobless”.
P.: (Ainda de cenho franzido.) – Curioso. Deve pertencer a algum dialeto bretão. Quem sabe até um idioleto. E em italiano, como é?
Terceira secretária: (Faz nova consulta.) – É “disoccupato”, majestade.
P.: (Dirige-se à Segunda secretária.) – Anote esses termos aí no meu caderninho de terminologia recém-aprendida. Ponha junto com “trabalho” e “problemas”, esses termos que aprendi ultimamente, mas que não sei se vou usar algum dia.
Segunda secretária: (Finalmente sentindo-se útil de alguma forma, abrindo celeremente uma caderneta sobre a mesa.) – Sim, majestade. Sim, majestade.
P.: (Para a terceira secretária.) – Aproveite e veja logo como é em espanhol, francês e alemão também. Nesse mundo globalizado a gente nunca sabe o que pode encontrar pela frente.
Terceira secretária: (Faz nova consulta.) – É “chômeurs” em francês, “Arbeitslose” em alemão e “desocupado” em espanhol, alteza.
P.: – Hum... desocupado... que belo termo esse. Não sei por que toca algo dentro de mim. (Gesticula para que a segunda secretária tome as devidas providências em relação ao seu novo glossário. Esfrega as mãos, contente.) – Ótimo. Ótimo. A partir de agora vou deixar meus colegas mandatários de boca aberta quando estiver recebendo comendas em universidades centenárias ou discursando em parlamentos europeus. (Olha para o espelho no teto.) – Já pensou? Eu lá em Oxford, toda aquela pompa e coisa e tal, o Blair, a rainha Elizabeth, todos me olhando assoberbados, paradões no meu charme, e eu de repente, sem aviso nenhum, assim sem mais nem menos, exclamo, “Long live the unemployed. Long live the unemployed.” Vai ser um show. O Tony vai dizer, pô esse sujeito não para de me esnobar. Vai ser um show!
Todos: – Vai ser um show! Vai ser um show! Vai ser um show!
Segundo assessor: (Pigarreia. Ainda segura o fone.) – Com licença, majestade. Este homem desfl... desempregado diz que deseja falar diretamente com o senhor. Devo passar para o primeiro assessor?
P.: (Abre os braços com as mãos espalmadas.) – É claro que não. Terei todo o prazer em poder conversar com um desmunheca... desconsola...
Primeiro assessor: – Desenganado, alteza.
Segundo assessor: – Desembestado, alteza.
Primeira secretária:– Desembreado, alteza.
P.: (Gesticula energicamente com as mãos espalmadas para baixo, exigindo compostura e pensando, “esses funcionários públicos são uns... uns... bem, deixa pra lá”) – Calma. Calma, que eu acerto sozinho. É... desin... dojem... desem... desembargado. (O segundo assessor leva o aparelho telefônico até o presidente.) – Alô. Sim. Sim. Você não está sonhando, não. É o presidente falando. Seu presidente em cetro e manto. Diga lá, mon ami, o que um humilde presidente pode fazer por um desencarnado cidadão? Mas, antes de mais nada, me explique o que você faz na vida, pois ninguém aqui sabe me dizer direito o que é um... desembuchado. Pois então? Você dá palestras, viaja, discursa, apadrinha formaturas, recebe comendas, homenagens, distinções, insígnias, vai a banquetes, enfim, o que é que um desempregado faz na vida, cidadão? (De repente, o presidente empalidece. Pior: perde a cor. Pior ainda: fica branco feito as nuvens em que passa seu mandato. Procurando refazer-se do que parece ser um pesado jargão tipo cais do porto que escuta da pessoa do outro lado da linha, ele tapa o fone com a mão. Dirige-se a todos os presentes.) – Esse... desempenado está me destratando! A mim! O presidente da República! O maior presidente que este país já teve. Oh! Que palavreado inominável. Tem expressões de que nunca mais me lembrara depois que esqueceram tudo o que escrevi. (Continua escutando e ao mesmo tempo dirigindo-se aos presentes.) – Ui! Que palavra mais feia. Olhe aqui, não fale assim com seu presidente. O quê! O senhor não pode olhar através do telefone? Pois então escute aqui. O senhor é um... um pseudootário... um protobocó... subderrotado! Malfazente atrabiliário. (Entusiasmando-se, o presidente eleva o tom de voz. Assessores e secretárias cerram os punhos em gestos de incentivo. Começam a bater palmas a cada novo adjetivo proferido pelo presidente. O líder máximo da nação prossegue com os impropérios.) – Superloser. Arquichoramingão. Enfant terrible. Infralesma. Retrógrado semi-sorumbático. Doidivanas infraesquizóide duma figa. (Assessores e secretárias ululam, esbravejam, extasiam-se, retorcem-se. Vendo que a coisa pegara fogo, o presidente dá o golpe final.) – Seu... seu... neobobo. (A sala quase vem abaixo. Acham-se todos à beira da apoplexia.)
Todos: (Urrando, uivando, socando os pés no chão.) – Neobobo! Neobobo! Neobobo! Neobobo! Neobobo!
P.: – Pô, ele desligou. Grosseirão. (Empertiga o peito, olha para um ponto perdido no espelho.) – Esse povo não está preparado para mim. Gente mal-agradecida. É por isso que eu queria ser presidente da França. Lá o pessoal só fala francês. Já pensou. Todo mundo parlant dans la langue de Richelieu, de Montesquieu, de Brigitte Bardot, de Zidane, que afundou o Brasil na copa de noventa e oito... Pratini, que tirou o Brasil da copa em oitenta e seis. Ai. Ai, que vou chorar.
Segunda secretária: (Querendo ser útil.) – Ah, não se estresse, majestade. O que importa é que nós sabemos dar valor a vossa alteza. (Mas o presidente continua com o olhar perdido no espelho, empunhando o cetro com uma das mãos e segurando a pança com a outra, e a segunda secretária outra vez sente-se menosprezada.)
A sala cai em silêncio enquanto todos olham compadecidos o presidente, alguns balançando a cabeça em sinal de condenação ao ato ensandecido do desenlatado, outros com os lábios crispados, talvez reprimindo os palavrões que desejam lançar contra a mãe do infeliz. Permanecem em suspense até que o presidente começa a girar os olhos pelos demais espelhos, dando mostras de que está-se recuperando do choque. A segunda secretária corre a lhe oferecer um copo d'água de coco do Havaí, que ele aceita e agradece com seu peculiar movimento vertical das sobrancelhas combinado a uma inefável e maliciosa expressão de vítima.
P.: – Obrigado. Obrigado a todos. Já passou. Já passou. Eu me refaço rápido dos reveses da vida. Sim, sou um forte. Vocês sabem. Voltemos à agenda.
Primeiro assessor: – Pois bem, alteza. Ainda temos a pendência da prefeitura de Nova York.
P.: – Pô, pensei que já estivesse decidido.
Primeiro assessor: – Está, mas o prefeito só aceita que o Brasil financie noventa e nove por cento da reconstrução das torres gêmeas. Diz que é questão de honra para os americanos arcarem com pelo menos um por cento.
P.: – Pô, tem hora que esses americanos me dão nos nervos. Mas tudo bem. Minha maior qualidade é a capacidade de articulação. De acomodação.
Primeira secretária: – O Bush enviou um email exigindo que assine um contrato de oitenta anos para importação de café, soja, queijo de minas no valor de trinta bilhões de dólares anuais. Ele já mandou redigir e pôr um xis bem grande onde o senhor deve assinar. Ah, ele também quer despachar uns dois milhões de cucarachas para algum lugar por aqui. Diz que os Estados Unidos não têm onde pôr essa gente e que é nossa obrigação ajudar nosso brother texano que tantos benefícios já nos trouxe durante seu mandato, majestade.
P.: – Veja se dá para deixar o queijo de minas de fora. Acho que já fabricamos esse item no país. Afinal, a indústria brasileira em primeiro lugar. Sou um patriota. Quanto aos emigrantes, fale lá com o ACM. Ele sempre quer mais alguns milhões de baianos para aclamá-lo. Próxima pauta.
Primeira secretária: – O Mitterrand ligou dizendo que está pronta a réplica da Torre Eiffel. Vai custar apenas seis bilhões de francos. Ele se referiu ao senhor com uns termos em francês que não entendi bem, coisas como foilie, insensé, outrage, patriotisme...
P.: – Non. Non. Non. Non é assim que se pronuncia a língua de la Fontaine, dona Catarina. Aliás, a senhora conhece a fábula do lobo e do cordeirinho? Não? Puxa, aquilo é que é literatura. Quando o lobo pula no pescoço do cordeirinho porque este ousa tomar água no mesmo córrego, ah, que moral, moralíssima moral, gosto de representar o Bush fazendo o papel de lobo, enquanto que o cordeirinho é... Bom, não vem ao caso. Oh que belas palavras essas do Mitterrand. Patriotisme. Sim. O que não faço pela pátria. E por meus patrícios. Amanhã quero curso de francês em todas as escolas. Mande contratar hoje mesmo uns cem mil franceses. Têm de ser nativos, hein. Sim, esse será mais um programa de educação que me projetará para a fama eterna. (O presidente ergue lentamente os braços por sob o manto monárquico, dando a impressão de que se estufa de orgulho. Aperta os lábios, ergue o queixo e mira o espelho do teto com o ar altivo dos semideuses.) – Ainda tem gente que me chama de puxa-saco galicista. Deixa estar. Não dou a mínima para essa gentinha encardida. (Todos os olhares estão presos no chefe, hipnotizados, anestesiados de acachapante sublimação. As mulheres sonham com um novo, bem-falante, bem-viajado marido com cara de totem sob efeito de mescalina. Os homens pensam, porra, que poltrão sedutor. O primeiro assessor imagina-se até... bem, deixa para lá. Passam-se vários minutos. O presidente aos poucos, muito poucos recobra a condição de predestinado sob controle. Faz repetidas carrancas para que o semblante volte ao estado de abulia normal e dirige-se à primeira secretária.) – Mas vamos logo com essa chatice, que eu preciso banquetear e depois tirar uma ciesta, pués nadie es de hierro, cês sabem.
Primeiro assessor: – As notas de reais com sua efígie já estão impressas e prontas para distribuição, majestade.
P.: – Ótimo. Mande fazer uma campanha diária na Globo. De hoje em diante todo brasileiro terá no bolso uma nota estampando este glamurosérrimo leguminosíssimo rosto que um dia, não muito longínquo, haverá de ser esculpido no monte Rushmore! Pombas, meus amiguinhos banqueiros as terão aos bilhões. Ai. Acho que não vou suportar tamanha emoção. (O presidente mira-se demoradamente no espelho.)
O telefone toca. Será o desembarcado de novo? Todos trocam olhares receosos. O presidente antecipa-se rumo ao aparelho, acenando com um gesto de quem diz, “deixa comigo que eu resolvo a parada.”
P.: (Fingindo autoridade.) – Presidente da República às suas ordens. Digo, alô. (Abre a boca como que preparando-se para detonar quem quer que esteja do outro lado da linha.) – Mas o quê. Não tolero lero-lero. Não tolero lero-lero. (Dá de ombros e desliga.) – Era uma gravação da companhia telefônica dizendo que a linha será cortada por falta de pagamento. Tudo bem. Nada abalará minha tresloucada e pirotécnica loquacidade. Eu garanto. A estabilidade da moeda está garantida.
O telefone toca outra vez. Pelo visto a linha ainda não foi cortada. A segunda secretária atende.
Segunda secretária: — Majestade. É o Bush de novo. Diz que metade do estado do Amazonas está em chamas. Eles estão prontos para invadir. Que o senhor não tem competência nem para apagar fires de Saint John.
P.: – É lógico que não vou apagar. Vocês viram a conta da água este mês? Bem, até que não foi tão alta. Ah. A gente até podia puxar um aqueduto do rio Mississipi para dar fim nessas queimadas. Não deve sair tão caro assim. Cáspite. Eu e minhas soluções geniais. Vê aí com o Bush se dá para ficar pronto antes do término do meu mandato. (Olha para os espelhos, aguardando enquanto a segunda secretária fala ao telefone. Ela se dirige novamente a ele dizendo que o americano topa fazer o aqueduto por quarenta bilhões de dólares, mas que vai invadir a Amazônia de qualquer jeito, pois precisa dum novo campo para testes atômicos. O presidente dá de ombros.) – Tubo bem, desde que ele não mexa na minha moedinha meio parada no ar. Afinal de contas aquele matagal é imprestável mesmo. Ah, pede para ele me trazer um home theater da Zona Franca. Hehehe. Ah, passe aqui o telefone, que eu quero falar com o Jorgelito. (Apanha o fone.) – Hello, George. Long time no see, hein! (Nota do transcritor: o que se segue é a tradução da conversa do homem com o Bush, pois falaram em inglês, claro.) – É, andei meio “zumídon” mas foi só por uns meses. Essa vida de presidente é uma pedreira, traçar os rumos dum país, ditar a direção a seguir mesmo contra a vontade de cento e setenta milhões, sabe como é. (Baixa a voz e vira o rosto para o lado em sinal de que o papo é confidencial.) – Cá pra nós, ô inhaqueira que a gente foi arrumar, hein, Dabliú. Gentinha resmungona, sempre de lenga-lenga, órfãos libelulídeos, guerrilheiros da lamúria, parturientes do estado obeso e rotundo, gaguejadores inconsoláveis, palanfrórios... Oh. Sorry. I got carried away. Há há há há. Bye então. Um abraço pro Jorjão seu pai. Ah. Jorge. Pára de ligar a cobrar, que tem uns antiglobalizacionistas aqui que estão azucrinando o meu ouvido. Ô gentinha atrasada, sô.
Alguém toca a campainha da porta. A terceira secretária sai para atender e volta em seguida.
Terceira secretária: – Majestade, seu parente está aí fora dizendo que só temos energia para uma lâmpida de 60 watts. Quer saber qual delas vai ficar acesa, a da rua ou a do corredor.
P.: (Fecha os olhos, põe as mãos na cabeça e olha para cima.) – Não é lâmpida, chéri, é buuuuuuuuuuulb! Ampooooooooooooule! (Pensa, ô gentinha ignorante sô. Dirige-se à moça.) – Ah, como são chatos esses parentes. Só me trazem problemas. Problemas, problemas e mais problemas. Até parece que estou aqui para resolver problemas. Que derrotistas, sô. Tenho viagem marcada para a Espanha às duas da tarde. O Juan vai me homenagear. Passa para o primeiro assessor. Ou melhor, liga para o Bush e veja se ele tem um pouco de energia sobrando. Manda pôr na conta, o próximo presidente acerta depois. Mas deixe claro que não vou tolerar exploração, entendeu. Viram como eu resolvo tudo? Pô, eu sou demais. Que outro presidente faria tudo o que faço pelo país? Hein? Eu sou demais.
Terceira secretária: – Vossa alteza é bárbaro, majestade. (Ela suspira, o olhar esquecido no presidente denunciando uma paixão que ela já não se importa em ocultar.) (Ai majestadezinha fofa da titia, pensa. As demais secretárias metralham-na com olhares furibundos, fuzilando-a com caretas de inveja e canhoneando-a com carrancas de raiva por ter sido ela a primeira a extravasar os acalorados sentimentos que todas nutrem pelo garboso, paroleiro estadista. O primeiro assessor remexe-se na cadeira, uma expressão ambiguamente desconfortável.)
Alguém bate à porta. O segundo assessor sai para atender e retorna quase imediatamente, aflito.
Primeiro assessor: – Majestade! Majestade! É seu parente de novo. O querosene aeronáutico está no fim. O pouco que sobrou só dá para ir ao Paraguai. E sem volta.
O parlapatão tenta apoiar-se no cetro, mas faltam-lhe as pernas. Desaba na poltrona presidencial e tomba a cabeça para a frente. A coroa solta-se e sai rolando pelo chão, desprendendo algumas pedras que ninguém se dá o trabalho de recolher. Reluta, procurando dissimular as tenebrosas sombras que lhe ofuscam o rosto outrora permanente, imorredouramente otimista. Todos correm para ele, balbuciando, “majestade!, majestade! Não me deixe agora. Peguem-no!”, como nos filmes calamitosamente mal traduzidos que todos conhecemos. O primeiro assessor olha para o segundo e, com um gesto de cabeça, indica o saco pendurado perto da porta. O segundo assessor obedece e vai buscar o dito cujo, trazendo-o com algum esforço. Coloca-o na mesa, abrindo-o atabalhoadamente. Todas as mãos enfiam-se no saco ao mesmo tempo e, ao saírem, estão cheias de confete, que é arremessado na direção do presidente. O gesto é repetido inúmeras vezes. Sob a tempestade de papeizinhos multicores, o presidente continua inerme. O primeiro assessor agarra-o por um ombro e chacoalha. O homem está catatônico.
Terceira secretária: – Já sei. (Corre até um dos armários e volta trazendo um aviãozinho de pilha.) – Veja, peripatética majestade. Seu aviãozinho preferido.
Sua alteza tenta reagir. A cor do rosto parece voltar, mas o olhar continua vidrado. Ele apanha o brinquedo e move o braço esticado à frente, deixando-se entreter em sua brincadeira de todas as manhãs.
P.: – Uóóóóóóóóóó! Uóóóóóóóóóó! Atenção, senhores passageiros, estamos no piloto automático. Estamos no piloto automático! Quem quiser pode saltar, só que não tem paraquedas. Há há há há há.
Assessores e secretárias retiram-se pesarosos da sala. Sabem que ele levará alguns dias para recuperar o inigualável deleite com que governa o destino de todos nós.


Autor: Wilson Vaccari