Você acha possível que um texto seja repugnante,
ingênuo, esquisito e autorrevelador ao
mesmo tempo?
Eu também pensava que não. Até deparar com
a proeza. Seu autor? O empresário Ricardo Semler. Lugar? Como não poderia
deixar de ser, no site da indefectível Folha de São Paulo (quem quiser experimentar
o espanto que me acometeu clique em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/196552-nunca-se-roubou-tao-pouco.shtml)
Semler foi capaz de perpetrar um dos mais
embostelados textos políticos dos inúmeros trazidos a lume na internet durante
o nada saudoso annus horribilis de
2014. Encimado pelo inacreditável título Nunca
se roubou tão pouco, o artigo trata
dos recentes escândalos de corrupção ora expostos aos olhos do público pela
Operação Lava Jato (que, como já denunciado por Ruy Castro, devia chamar-se “Lava
a Jato”, por respeito ao vernáculo; não sejamos exigentes demais, todavia; tudo
estará bem enquanto a PF mantiver sua máquina de lavar eliminando saqueadores imundos
dos quadros da Petrobras, das demais estatais e, torçamos todos, do Planalto).
Mas que é que há afinal de tão repulsivo e
singular no texto do digno representante da elite branca Ricardo Semler a ponto
de suscitar nojo e perplexidade? De alto abaixo, não se salva uma só ideia no artigo
do homem. O sentimento de repulsa inicia, como já assinalado, no título
espantoso e vai recrudescendo palavra após palavra.
Nunca se
roubou tão pouco?
Só pode ser piada.
Ainda mais vindo de quem vem.
O autor se apressa a mostrar seu cartão
de visitas àqueles que ainda não o conhecem. “Não sou petista”, declara logo no primeiro período. “E sim tucano.” O alerta reforça a
impressão de que estamos diante duma baldada tentativa de ironia. Ora, o leitor
haverá de pensar, um tucano jamais faria tal diagnóstico do grau de corrupção que
o país está atravessando. A menos que de tucano tivesse só a plumagem. Enunciar
tamanha mistificação e ainda afetar uma máscara de circunspeção, ora, só o sr.
da Silva com seu imbatível cinismo seria capaz de.
Ocorre que, mal terminada a leitura do
mesmo primeiro parágrafo, o leitor percebe que suas primeiras impressões sobre
o artigo não foram bem precisas: “Não
sendo petista, e sim tucano, sinto-me à vontade para constatar que essa onda de
prisões de executivos é um passo histórico para este país”. Não, não há
nada de jocoso no tom do sr. Ricardo Semler. Muitos menos de sarcasmo. E ao
leitor aconselha-se não se desarmar ainda da prudência: não, repita-se, não se
trata de mais um discurso de Lula em “defesa” da Petrobrás.
Sob a confusão inicial, o leitor sente-se
num incômodo estado entre o assombro e a estupefação. Reluta em decidir se deve
assumir de vez estar diante duma impostura. A hipótese da ironia teima em
resistir. Será mesmo, vai perguntando-se, pondo em dúvida sua própria
capacidade de entendimento, será mesmo que esse tucano de grã plumagem teve o
desplante de publicar na Folha de São Paulo um artigo concedendo ao lulopetismo
o mérito pela detenção dos grandes larápios empreiteiros?
Semler crê de fato que foi a sra. Dilma Rousseff
a responsável pelas prisões?
Sim. Semler crê. E não deixa por menos. Ainda
tasca, nada mais, nada menos, um retumbante qualificativo. Dilma está dando um passo histórico!
Pelo menos, o leitor tenta se resignar,
pelo menos não é mais um daqueles articulistas que obram bocejantes parolices
diariamente no portal da FSP e de que ele, leitor, aprendeu a fugir feito o
diabo daquela coisa de que todo diabo foge. Esse Semler ao menos tem audácia. Vejamos
até onde vai o descaramento do cabra.
E o cabra de fato vai fundo. Nos
parágrafos subsequentes deixa claro que estamos diante dum empresário despojado
não só de preconceito ideológico mas também, e principalmente, de senso de
ridículo.
Depois de glorificar o feito histórico dos petistas que finalmente
justiçaram a elite econômica brasileira, Semler prossegue classificando de
hipócritas e cínicos a todos que se sentem indignados com os descalabros na
Petrobras. “Afinal”, pergunta, “quem não deu uma cervejinha para um guarda?”
Estabelecida a premissa, continua com a arenga até culminar numa declaração de
amor explícito a Dilma Rousseff: “É
ingênuo quem acha que poderia ter acontecido com qualquer presidente. Com
bandalheiras vastamente maiores, nunca a Polícia Federal teria tido autonomia
para prender corruptos cujos tentáculos levam ao próprio governo.”
O artigo sórdido de Semler não se
destacaria de tantos outros que a internet tão prodigamente coloca a cada semana
ao alcance do nosso clique não fosse a insistência com que seu autor declara ser
tucano e nega ser petista (como todo petista, seja enrustido ou não, é apenas mais
um a subestimar nossa capacidade cognitiva). Tivesse a peça sido escrita por um
janio-de-freitas da vida ou qualquer outro articulista que aluga seu teclado à
exaltação extática do lulopetismo, não lhe teria dado maior importância. Há
anos tenho passado ao largo de gente que sonha em submeter nossa incipiente
democracia à intolerância neo-stalinista como método para atingir uma igualdade
social que só é possível na prática através duma luta de classes que em todos
os lugares em que foi tentada terminou em carnificina. Destruir nosso sistema
de representação política sempre foi o objetivo que os lulopetistas fizeram o
diabo para camuflar e hoje não conseguem mais esconder. Com a vozinha doce e
mansa dum monge, e o olhar sinistro dum psicopata que aguarda o melhor momento
para atacar sua vítima, gente como Gilberto Carvalho e Rui Falcão enfim botam
as garras de fora da pele de cordeiro.
O mais duro de engolir no artigo de
Semler é seu autor ser – ou declarar ser – quem é.
Quase a cada parágrafo o tucano-dilmista sacode
um cartão de visitas diante do nariz do leitor. Não cansa de advertir: leitor, pode
confiar no que estou dizendo, pois não sou petista. A ressalva não deixa de ser
necessária, pois só um petista da gema seria capaz de defesa tão apaixonada da
atitude de Dilma Rousseff frente aos desdobramentos do petrolão. Outro propósito
da ressalva é legitimar ainda mais a posição que o autor irá explicitar ao
longo de seu artigo. Ressaltando com tanta veemência que não faz parte das
hostes lulistas, Semler procura obter um status de imparcialidade digno dos “isentos”.
Declarando-se tucano, imagina-se à vontade para tecer encômios rasgados àquela
que é a grande adversária de seu partido e que levou a última eleição
presidencial empregando as mais sórdidas fraudes jamais registradas na historiografia
brasileira. Com espantoso misto de má-fé e ingenuidade, Semler pretende se
mostrar um ser político ousado a ponto de desprezar as injunções impostas pelo
embate ideológico aos envolvidos no jogo partidário. No limite, tenta se despir
da fantasia de tucano para se mostrar em toda sua pureza de brasileiro que é,
acima de tudo, justo e deseja apenas o bem de seu país.
Não, não vou cometer a sandice de negar
que o brasileiro é corrupto no geral e no particular. Tendo a chance, mete a mão
no que não é dele. Sacadores como Roberto DaMatta vêm há anos enfiando o dedão
nas nossas mais profundas e indesejadas mazelas culturais. Só que, depois do
petrolão, todo mundo e seu antropólogo resolveu tirar carteirinha de explicador
social e, numa dessa, relativizar a responsabilidade dos que nos governam. DaMatta
tem um trabalho de mestre, entre tantos outros, em que expõe as engrenagens que
fazem do brasileiro o maior assassino no trânsito em todo o mundo. Seus achados
se mostram infinitamente mais relevantes que qualquer onda de denuncismo sobre
esse ou aquele partido político. A diferença é que o assassinato no trânsito
nada tem de ideológico – engloba socialistas, liberais, comunistas,
monarquistas indistintamente e por isso mesmo ninguém dá a mínima. De repente
descobrimos todos, entre estupefatos e decepcionados, que a corrupção na
Petrobras é culpa do Zé que molha a mão do guarda no trânsito, da Maria que
surrupia uma Bic dando sopa na mesa da recepcionista, do Joaquim que toma um
yakult na faixa antes de chegar à fila do caixa.
Eis a nova explicação esdrúxula que os
lulopetistas estão tentando colar no caso do petrolão. No assalto anterior ao
Erário, o mensalão (cáspite, qual será e quando virá o próximo?), fabricaram
todo tipo imaginável de cortina de fumaça na tentativa de encobrir a verdade.
Eis que agora se entregam à faina de colar no petrolão a desculpa de que a “corrupção
é cultural”. Tal como ocorreu no mensalão, agora também não vai colar,
obviamente. Quero crer que estamos todos mais escaldados. Confio, e conto,
sobretudo com a integridade e a capacidade profissional do juiz Moro. Se tudo
sair como nós brasileiros honestos esperamos que saia, em breve teremos
FINALMENTE os verdadeiros mandachuvas atrás das grades, de quebra com a
destituição de Dilma, a Absurda. E o ostracismo definitivo de Lulla e sua chusma de ladrões.