Chega de small talk politizado

Huxley temia que a verdade submergisse num mar de irrelevância. No talo. Pena que os grandes escritores não vivam 500 anos e os ruins não sejam abortados. Que teria Huxley a dizer sobre o oceano de irrelevância que transborda por todos os lados na internet?
Há nazismo na sociedade brasileira e quiçá mundial, só as formas fascistas mudaram, o discurso é o mesmo. É foda jogar termos cabeludos como nazismo a torto e a direito, sem destino certo ou justificativa contextual, no mais das vezes simplesmente para insultar quem discorda de nós. Nos debates que travam petistas e tucanos diariamente nos fóruns do Estadão e da Folha, nazista, stalinista e fascista são os xingamentos preferidos nos dois lados. A intolerância dá o tom e ninguém admite a, com perdão da originalidade, pluralidade das ideias. Fazem um debate fascista nesse sentido. Mas ser fascista num debate não torna, ainda, alguém fascista. Apenas prova que os debatedores estão num estágio primitivo de urbanidade e civilidade.
O nazismo dificilmente poderia ter nascido em outra sociedade que não a alemã. Quem quer que passe uns tempos na Alemanha e observe atentamente a gente de lá ficará assombrado com a disciplina e a lealdade com que eles seguem a lei. Tudo que se ouve sobre a rigidez germânica é absolutamente verdade. Ao contrário de nós, que vamos adaptando as normas segundo nossa conveniência para nos darmos bem sobre os outros, os alemães NUNCA aventam a hipótese de burlar a legislação, seja pelo que for. Quando algo escapa do previsto — e às vezes isso acontece —, eles ficam literalmente perdidos. Se angustiam ante o inesperado. Lá não existe o nosso famigerado jeitinho, que dia a dia dinamita as nossas relações sociais e nos mete neste caos insuportável em que vivemos.
Conhecendo a Alemanha, você passa a compreender Hanna Arendt ter dito, em Eichmann em Jerusalém, que o carrasco não teve culpa pelas atrocidades que cometeu, indignando judeus mundo afora. Como ela diz, Eichmann recebeu ordens. E para um alemão é inconcebível não obedecer ordens. A desobediência não existe no cardápio deles.
Tô ficando aléxico.
Nosso pensamento não morre. O meu anda sonâmbulo mas ainda não moribundo. Nosso pensamento está apenas, com perdão do chavão, anestesiado, sob gigateraquilhões da mais sólida, mais compacta irrelevância cibernética, como temia nosso esbelto quatro-olho Huxley.
Tem a raça essa espetacular tendência a não pensar. Como disse Pessoa, eles confundem pensar e sentir. O pensamento genuíno, aquele que brota como reação inteligente aos estímulos internos e externos e é regurgitado pela nossa cabeça na forma de criação e inventividade, está restrito aos círculos intelectuais distribuídos aqui e ali em fortalezas cercadas de fundas valas atulhadas de compêndios inacessíveis à patuleia habitadas por alquimistas hiper-eruditos a serviço do poderzão invisível que comanda os robozinhos de plástico, nós.
Até aí, não mudou muito ao longo da história. Os vassalos feudais se acreditavam sub-humanos ante seus senhores divinos. Só que agora, na chamada Idade Mídia, a vocação à vassalagem está totalmente exposta aos olhos do mundo e em vez de denunciá-la, queremos mais é curti-la.
Quando a internet eclodiu pra valer no início dos 90 bradamos alvíssaras. Era então impossível não ver esta fantástica máquina de informar como a revolução que viria enfim nos livrar da solidão das trevas disseminando conhecimento a qualquer um que tivesse uma tela diante do nariz. A mim me parece que o potencial informativo tá saindo pela culatra. A única coisa que vejo sendo disseminada até agora é anestesia em doses mastodônticas. Eu particularmente saudei o advento da internet como pelo menos um antídoto ao consumo mecânico da burrice posta à nossa disposição pela tevê e que ingerimos como se fora ambrosia, mas só vejo a burrice crescer em ritmo ainda mais intenso.
Os fóruns, que a princípio pareciam manás caídos do céu que adubariam o esclarecimento, viraram um fim em si mesmos. Fico pasmo que isso seja não só aceito mas, o que é o cúmulo, autoalimentado numa circularidade que bota a ciranda anestesiante emburrecedora a girar à vertigem. Uma vez um sujeito entrou numa das minhas postagens pra dizer que eu reclamava demais. Quis responder que estava apenas tentando ficar longe da geleia pasmacenta que tomam por discussão mas achei melhor ficar na minha. Dizer o que prum zumbi desses? “Desculpe, vou tentar não ser tão chato e guardar minhas opiniões pra mim mesmo na próxima”?
Estou repetindo esta arenga — e dando azo à minha chatice pela enésima vez — só pra lamentar que se o pensamento é o primeiro a sucumbir num fórum que se pretende intelectualizado, que dirá do “verdadeiro desfile de fantoches patéticos nos palcos bem diante de nossos narizes”?
Nós aqui, brasileiros do século 21, nos contentamos com o papel de expectadores do desfile dos fantoches grotescos porque saltamos todas as grandes e sanguinolentas revoluções que determinaram os processos civilizatórios ocidentais e moldaram os estados nacionais como são hoje na Europa e na América do Norte, fora México. O maior salto que sofremos foi o da Revolução Francesa, cujos desdobramentos civilizatórios não chegaram a estas plagas. A Europa nunca mais deixou de guerrear depois da queda do Império Romano. Os EUA tiveram de expulsar os ingleses e amansar os franceses no braço para em seguida cair numa das mais sangrentas guerras de todos os tempos, a da Secessão. Ao passo que nosso grito de independência três pontinhos.
Acompanhamos de longe, indiferentes e alienados, as reviravoltas sociais e políticas ocorridas a partir de 1789. Experienciamos os tempos modernos sem os assimilar. O Brasilzão da Região Central pra cima é um amontoado de capitanias hereditárias sob o jugo férreo de senhores feudais. Mesmo aqui no Sul há imensos grotões medievais, os ditos currais, em que o voto de cabresto ainda é decisivo. Minha empregada conta que a maioria de seus vizinhos renunciou definitivamente a trabalhar para ganhar o “direito” às bolsas-esmolas de Painho. Sequer chegamos ainda ao nível de civilização em que nos conscientizamos de que a única ferramenta que temos para mudar nossa realidade é o trabalho. Os protestantes sabem disso há pelo menos quatro séculos.
Daí nossa democracia não funcionar. Votamos em quem achamos que devemos votar mas baixamos a cabeça quando aqueles em quem votamos nos tiram o que é nosso. Como não passamos pela Revolução Francesa, ainda mantemos uma relação de senhor-vassalo com os que detêm o poder. Nos sentimos inferiores diante do guarda de trânsito, do médico, do funcionário público e de quem quer que tenha “autoridade” para montar em nosso lombo.
Isso não significa que a democracia em vigor nos países desenvolvidos seja resposta pra tudo. Para Nietzsche e Ortega y Gasset, a democracia seria o fim do primado da excelência e da inteligência. Mas qual seria o remédio? O mais tentado até agora tem sido o totalitarismo esquerdizoide que deu em gulags como URSS, Coreia do Norte e Cuba, pra ficarmos nos mais notórios. Prefiro a “enxurrada de porcarias que se veicula todos os dias na nossa cultura ocidental” — admito até que não vejo alternativa para boçais como Lula; afinal, pretendemos viver uma democracia —, aos manicômios estatais stalinistas em que a nomenclatura leva tudo às custas do povão. Aqui pelo menos a casta é de uns poucos milhões de privilegiados.